O GLOBO - 08/08
Estão sempre prontos a soprar no ouvido de quem toma as decisões que não há razões para adotar medidas mais duras
Em 2016, terão se passado três décadas desde a “reunião de Carajás”. Para os mais jovens, é útil trazer os fatos antigos à tona. Em fevereiro de 1986, foi adotado o Plano Cruzado. A inflação, na época em mais de 200% ao ano, ameaçava se transformar em hiperinflação e, nesse contexto, o então presidente José Sarney lançou um plano de mudança do nome da moeda, embutindo uma modificação das regras de indexação e um congelamento de preços. O sucesso foi imediato, e a popularidade do presidente subiu como um foguete. O congelamento de preços, tido como a “cereja do bolo” do plano, mas concebido pelos seus mentores como uma medida estritamente temporária, acabou se estendendo por um tempo muito maior do que seria prudente, gerando todos os problemas clássicos desse tipo de situações, como o desaparecimento de produtos e o surgimento do ágio e do mercado negro.
Tentando evitar um colapso do plano antes das eleições legislativas que renovariam o Congresso no fim do ano, Sarney reuniu a equipe econômica em Carajás, na Amazônia, para, longe das pressões do dia a dia, discutir os rumos do plano. Ficou célebre, na época, a instrução que, mais ou menos com as seguintes palavras, teria sido passada aos colegas por um dos presentes: “É preciso que todos aqui façamos o papel do urubu, dizendo que as coisas estão muito ruins, como de fato estão, para que o governo adote as medidas necessárias para enfrentar a crise. Não pode haver um só participante que faça o papel de canarinho, sinalizando que as coisas não são tão ruins. Se aparecer um único canarinho entre 20 urubus, o presidente vai ouvir o canarinho”. Nunca se soube ao certo quem foi o canarinho, mas Sarney não se convenceu da necessidade de fazer ajustes naquele momento. Quando eles vieram, foi tarde demais e de forma atabalhoada, levando o plano de roldão e inaugurando uma fase negra da vida do país que foi até o plano Real de 1994, quando, depois de outros quatro planos fracassados, o Brasil, finalmente, conheceu certa estabilidade.
Para os mais velhos, que temos a lembrança daqueles anos, é inevitável recordar esse embate, quando hoje vemos a repetição, de certa forma, daquele entrechoque de opiniões, com as devidas adaptações às circunstâncias do momento. Mais uma vez, no debate que cerca as decisões a serem tomadas pelo presidente Temer e as leis discutidas no Congresso, observa-se o conflito entre “urubus” e “canarinhos”, com a ressalva de que estes parecem constituir um aguerrido exército de militantes, sempre prontos a soprar no ouvido de quem toma as decisões que não há razões para adotar medidas mais duras.
Talvez em poucas áreas isso seja tão evidente como na Previdência. Se uma balconista de uma lanchonete de um país desenvolvido do Hemisfério Norte, que ganha salário mínimo e acorda no inverno para abrir o estabelecimento às seis da manhã com neve e 10 graus negativos de temperatura, quiser se aposentar, terá que trabalhar até os 65 ou 67 anos, dependendo do país. Já aqui no Brasil, eu, aos 54 anos, se fosse mulher e meus pais tivessem começado a pagar o carnê de autônomo do INSS aos 16 anos, poderia estar usufruindo a aposentadoria há oito anos. É por essas e outras coisas que a despesa primária do Governo central era de 14% do PIB em 1991 e deverá ser de 24% do PIB este ano e que a despesa do INSS, que foi de 2,5% do PIB em 1988 — ano da, na época, “Nova Constituição” — alcançará 8% do PIB em 2016. A idade em que as mulheres se aposentam por tempo de contribuição no Brasil é de 53 anos. Nessa altura, a expectativa de sobrevida por gênero, para o sexo feminino, é de 30 anos. Não é preciso ser um conhecedor de atuária para concluir que, se a pessoa contribui com 31% do seu salário por 30 anos, será difícil sustentar a aposentadoria por outros 30 sem que o sistema entre em colapso. E eis que quando este se aproxima em ritmo veloz, não faltam vozes que dizem que a Previdência é... superavitária!! Há de tudo no mundo, assim como existem grupos que, em outros países, militam em favor da causa de que “Elvis não morreu” ou que defendem a tese de que a ideia de que o homem teria pisado na Lula seria uma fraude.
Em resumo, o drama do país é que parece haver escassez de recursos — e excesso de canarinhos.
Fabio Giambiagi é economista
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