Do ponto de vista do marketing, faz todo o sentido a narrativa de que o impeachment da presidente Dilma seria um golpe. Com essa interpretação, o PT ganha fôlego ao jogar sobre o novo governo a responsabilidade por todos os problemas que os governos Lula-Dilma criaram nos últimos anos, ficando livre para lembrar as boas políticas que fez e tendo a bandeira da vitimização.
Tanto no caso de Dilma, quanto de Collor, o impeachment é uma violência constitucional e pode-se duvidar se os crimes identificados seriam suficientes para justificar a destituição de presidentes eleitos. No caso de Collor, o crime teria sido enriquecimento ilícito, sem crime de responsabilidade contra a Constituição; e mesmo desse crime comum, não de responsabilidade, ele foi posteriormente inocentado pelo STF.
No caso de Dilma, o uso de banco estatal para financiar programas do governo e a assinatura de decretos orçamentários sem autorização do Congresso são crimes de responsabilidade que ferem a Constituição. Mesmo assim, faz sentido duvidar se essas ilegalidades seriam suficientes para sua destituição. Incomoda a falta de dosimetria para a sentença.
Mas o que não pode ser aceito racionalmente é a falsa narrativa de que as pessoas se dividem em direita, se querem o impeachment, e esquerda, se defendem a volta da presidente Dilma. Nada mais falso. Ser de esquerda significa: em primeiro lugar, sentir inconformismo com a realidade social, política, econômica e ética do país; em segundo, ter expectativa de que é possível um mundo melhor, alguma forma de utopia; e terceiro, que este mundo melhor não ocorrerá naturalmente, por regras de mercado. Ele só será construído pela prática política progressista ou revolucionária.
É certo que muitos dos que defendem o impeachment são notórios conservadores, saídos do próprio bloco de apoio à presidente Dilma. Mas aqueles que se opõem ao impeachment são em geral acomodados politicamente em relação ao presente, comemoram pequenas conquistas sociais, perderam a capacidade de sonhar uma sociedade utópica, como, por exemplo, os filhos dos pobres estudarem em escolas tão boas quanto às dos ricos, e abriram mão do vigor transformador da sociedade. Além disso, ficaram coniventes com a ideia de que se todos roubam, não há porque exigir honestidade dos aliados. Ainda mais, olham pelo espelho retrovisor da história, sem perceberem que a realidade mudou e que as propostas e os processos políticos precisam levar em conta as mudanças.
A esquerda do retrovisor não percebe, por exemplo, que o aumento na esperança de vida e o esgotamento fiscal do Estado exigem reformas nos fundamentos do sistema previdenciário; que a globalização apresenta limites à autonomia das decisões nacionais; que a revolução científica e tecnológica, junto com a informática e a robótica, exige um aperfeiçoamento das leis trabalhistas. Não percebe que a economia tem limites fiscais e ecológicos; que o estatismo muitas vezes se divorcia do interesse público, do povo; que a democracia com liberdades plenas deve ser um compromisso absoluto, inegociável, e que a política de esquerda não pode ser feita com a arrogância de donos da verdade, nem pode tolerar corrupção, ou aceitar que os fins justificam os meios.
Com um mínimo de seriedade, não é possível dividir as posições sobre esse impasse como um debate entre esquerda e direita: há muitos direitas entre os que defendem o impeachment, mas também muitos esquerdas do retrovisor entre aqueles que se opõem ao impeachment, porque não querem fazer a história avançar. Mas, sobretudo, há muitos de esquerda que olham para frente, pelo para-brisa e consideram necessário o impeachment para virar a página e avançar em direção a um novo tempo.
Não é difícil entender que a volta da presidente Dilma seria um gesto de retrovisor e não de avanço; e que sua substituição pelo vice conservador que ela escolheu, desde que seguindo os ritos constitucionais, possa possibilitar uma travessia para que a esquerda do para-brisa entenda as mudanças, se sintonize com o futuro e leve adiante a luta que os acomodados não fizeram nem farão. E que tentam impedir o impeachment com o golpe da ideologia, sabendo das dificuldades políticas, econômicas, sociais, éticas que este acomodamento conservador da esquerda retrovisor provocaria.
Um comentário:
Buarque pode ser contraditório em sua posição, mas ele é brilhante, assim como seu «Projeto para a Educação»; Buarque é uma truta. Ou: Buarque & as águas turbulentas. Vejamos:
O Cristovam não está equivocado de maneira alguma. Buarque é cuidadoso, não se move por impulso publicitário que age no sistema nervoso de imediato e nem em clichês e frases-prontas PETISTAS (estereótipos verbais, imagéticos e linguísticos, e dispositivos mediáticos à maneira de João Santana). Cristovam Buarque é homem vivido, agudo e perspicaz, intelectual, cuidadoso e sóbrio, enfim valente -- sem medo de ser enxovalhado pela vigilância retrógrada dentro das universidades atuais (no entanto, com a mente nos equívocos do século XX -- ou seja: teorias e reflexões já carcomidas), sem medo de seus pares e de textos de blogs "moderninhos" e super lidos -- como tem acontecido em textos que o chamam de "traíra" diariamente, nos últimos meses. Cristovam não é traíra; Cristovam é truta. Ele é aquele que está de prontidão na Universidade, de mente arejada, mas é como um peixe -- exatamente a «truta-das-fontes». Vejamos: sabe nadar contra a maré ideológica e modismos, clichês, estereótipos superados -- se assim for preciso e na hora apropriada, naquele momento sábio e mais difícil -- eis ali Cristovam exatamente como a truta, que nada contra a correnteza. De acordo com estudo publicado na "Revista Science", esse peixe aproveita-se de redemoinhos que giram ao redor de objetos imóveis na água. Faz isso para não se esforçar muito e dessa forma poupar energia a fim de nadar contra a correnteza. As trutas poupam TANTA energia que não precisam usar os principais músculos natatórios. “É uma maneira de se locomover em águas turbulentas sem gastar muita energia”, explica um dos autores do estudo, George Lauder, biomecânico da Universidade Harvard. ¿E vocês sabem o porquê desse peixe nadar contra a correnteza? Além de economizar importantes fontes de energia? Pesquisem!
O senador não se faz de vítima como Dilma & Letícia Sabatella, e nem Fernando Morais. A Buarque (o Cristovam é claro) só nos resta uma homenagem pragmática: e uma homenagem erudita (sim, artística!): tocar a ele a Música-de-Câmara, instrumental, abstrata, robusta, inabalável, que muito exige do ouvido, não-superficial, vigorosa: o quinteto de Schubert "A Truta" [D 667/Opus 114 -- "Die Forelle". Compositor: Franz Schubert], intensamente viva e alegre, que expressa a felicidade palpável, manifesta e solar. Um dia de verão luminoso e agradável, renovável. Ou seja: expressão da individuação -- certamente. E não do pensamento antiquado.
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