ESTADÃO - 05/08
O que a nossa situação extrema requer é uma dose cavalar de democracia
Morre-se sem hospital, o desemprego engata meio milhão por semestre, a quebradeira está só começando, mas tudo o que o “governo de salvação nacional” salvou foi o funcionalismo por mais quatro anos. “A condição para estabelecer um teto”, diz ele, é arrombar o teto que há. R$ 60 bilhões pros federais, R$ 50 bilhões pros estaduais, nada de contrapartidas. E ainda faltam os municipais. Como em Brasília todos os passarinhos são verdes e no Brasil quem elege é “a máquina”, não o eleitor, a dança de acasalamento é a única que se dança por lá. O País que coma bolos...
Há algo de muito torto na lente com que o Brasil se vê. As reações não combinam com as ações. É preciso empurrar o pânico que grassa aqui fora pra dentro daquele mundinho sem pressa que fabrica as crises, mas está dispensado de vivê-las. Nossa pauta política é estranhamente colonizada. Não discutimos nossos problemas, nossas urgências, nossas prioridades. Compramos as dos americanos, dos alemães, dos dinamarqueses, muito mais “modernas” e“progressistas”. Vivemos aos trambolhões, mas só falamos dos mais refinados passos de balé. Não nos decidimos nunca a bater a água e a farinha do bolo, mas temos tudo a dizer sobre as coberturas que ele poderia ter se existisse. Não temos a comida e a integridade física garantidas, mas baixamos uma lei por minuto para prevenir que quem venha a sobreviver a este nosso olímpico descaso para com o principal incorra no risco de pensar ou sentir“incorretamente”. O massacre é amplo, geral e irrestrito, maior que o de todas as sírias, mas “indignação” mesmo só com os pedacinhos dele que alimentem considerações“modernas” sobre a raça ou o gênero das minorias identificáveis na pilha dos 57 mil assassinados de cada ano.
Segurança pública pra valer (e mobilidade, transporte, acesso e o mais...) só quando inglês vier. Depois, de volta ao dilúvio...
Nós copiamos o “jeitão” das democracias e trabalhamos feito loucos pelo aplauso de quem a pratica. Mas pra brasileiro mesmo, nada. A Constituição americana, com 227 anos de idade, tem 7 artigos e 27 emendas. A nossa última, com 28, nasceu com 250 artigos e já tem mais de 80 emendas. A deles define os sete pilares da democracia, quantos bastam para o povo mandar nos seus governantes e não mais se deixar roubar. A nossa também os inclui, mas soterrados em 330 exceções que garantem que fique afastado das“excelências” o cálice da submissão à lei.
A função da Corte Suprema deles é garantir as 7 regras, a da nossa é impor as 330 exceções. E isso faz de tudo o mais o inverso do que parece. Consagramos o “federalismo”, mas vivemos a ditadura tributária centralizadora do Executivo. Instituímos “Poderes independentes”, mas, com tudo e mais alguma coisa transformado em “norma constitucional”, base por definição de qualquer pretensão exigível nos tribunais, o Judiciário e, no fim, o Supremo, tudo pode decidir ou“desdecidir”. Tudo acaba sempre nos 11 e dos 11 bastam 6...
“As instituições estão funcionando”?
Sim! Desgraçadamente! Enquanto forem as que são,“abandonai toda a esperança, ó vós que estais dentro”. É claro que fora do rito institucional é a selva e é dentro dele que temos de desmanchar essa confusão fabricada. Essa história de que é inconstitucional desconstitucionalizar o que quer que tenha sido constitucionalizado um dia é um truque barato. Até burro dá marcha à ré para não despencar no abismo. Para além do rito tudo tem de ser refeito. E o caminho para isso, testado e aprovado, existe.
A raiz do câncer é a “representação” subornada imposta à sociedade. Desde Getúlio come solta a metástase sindical. Desde 88 come também a partidária. Continuam “deles” as estatais, estoque de feudos a serem distribuídos aos barões que sustentarão o rei da vez. É isso que garante que tudo apodreça antes de amadurecer. Não há quem não saiba, não há quem não veja. Mas é proibido dizer. Vamos em frente esmurrando a faca, “proibindo” no papel que se produzam na vida real as consequências obrigatórias das causas que nos recusamos a remover.
Não dá mais. Batemos no osso. Agora é física a impossibilidade de levar a vida “arrecadando”. A alternativa para o certo é o errado. Não há meias medidas. Ou mudamos pra valer, na raiz, ou nos arrebentamos todos. A corrupção não é “causa” de nada. É só a pior consequência da falta de democracia. Puni-la, apenas, não resolve coisa alguma. O que a nossa situação extrema requer é uma dose cavalar de democracia.
O Brasil não é imune à democracia. Apenas não tem ideia do que ela é. Desenhar instituições – democráticas ou antidemocráticas – é encadear dependências. É isso que determina o jogo. O nosso é mais explícito a cada ato. Na ordem institucional, como na vida, manda quem tem o poder de demitir. Você está sendo demitido, mesmo fazendo tudo certo, porque “eles” não podem ser demitidos mesmo fazendo tudo errado. Nem quando a República sucedeu ao Império, nem nas idas e voltas das ditaduras, jamais mudou a nossa maneira antidemocrática de encadear dependências.
Descartem-se os bandidos para efeito de raciocínio. Democracia é o povo no poder, nem mais nem menos. Mas nem os nossos “liberais” nem os nossos“desenvolvimentistas” mais bem-intencionados contemplam a sério a ideia de pôr o povo no poder e submeter-se à vontade dele. Criticam-se mutuamente as “intenções”, mas só reivindicam uns o lugar dos outros no controle das mesmas alavancas.
É isso que tem de mudar. Revoluções só acontecem de baixo para cima e, no limite em que estamos, nós vamos ter uma logo, controlada ou não. O “recall” é a chave comutadora. Dá ao povo o poder de demitir e reformar Estado adentro e o voto distrital permite que essa revolução aconteça com segurança e sem dor. Plantadas nos municípios essas sementes da saúde já invertem irreversivelmente a cadeia das dependências e, com ela, a das lealdades. Daí em diante o desmonte da doença acontece sozinho, pedaço por pedaço.
* FERNÃO LARA MESQUITA É JORNALISTA
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