Há alguns dias, encerrei meu artigo neste espaço com estas palavras: "Será difícil respirar. Que possamos sobreviver aos fatos". Àquela altura, logo depois da condução coercitiva do ex-presidente Lula à Polícia Federal, ainda com a expectativa da manifestação que reuniria milhões de pessoas nas ruas e se tornaria o maior evento político desde o movimento Diretas Já!, era fácil intuir que teríamos semanas de moer os ossos e exaltar os ânimos. Os últimos dias estão aí para provar que "sobreviver aos fatos" prossegue como um desafio. Na verdade, os desafios são bem maiores. Eu diria hoje: "Que a democracia sobreviva aos fatos, que os fatos se sobreponham às interpretações; que as leis sejam maiores que as vaidades; que as amizades vençam as adversidades políticas!".
A realidade política brasileira é hoje seriado, daqueles que hipnotizam todo mundo. Não se fala em outra coisa, e é até bom que seja assim. Esqueça o país que, há quase duas décadas, vivia enredo de estabilidade, apesar de seus altos e baixos. Não faz muito tempo, estávamos numa zona de sugestivo conforto, elogiados lá fora, com imagem preservada diante de nossos vizinhos, estes tão sujeitos a intempéries de todo tipo. De uns anos para cá, foi como se alguém tivesse aberto o forno antes do tempo: o país murchou tal como bolo solado. Houve uma série de motivos para isso, a começar por incompetência, mas entre eles há um ingrediente que fermentou a crise: a corrupção. Saiu pelos poros de um sistema político podre e deteriorado, que há tempo, e põe tempo nisso, corrói as riquezas brasileiras.
Nenhum partido político está livre dele. E, a despeito de o PT ser a bola da vez, é sabido que poucas legendas sairão incólumes da avalanche da Operação Lava-Jato. A questão que se impõe agora é se a presidente Dilma Rousseff conseguirá terminar o mandato - dúvida que se tornou imperiosa depois da ida de Lula para o governo. Há algumas variáveis que pesam nessa equação, como o rito de impeachment, os julgamentos de liminares pela Justiça sobre a permanência ou não do ex-presidente como ministro, os desdobramentos da Lava-Jato; o vazamento das escutas; a possibilidade de uma renúncia. Mas há também a voz das ruas. Como interpretá-la?
A voz das ruas não é um grito uníssono contra a corrupção, como muitos gostam de afirmar. Se fosse assim, não haveria um duelo entre o vermelho e o verde-amarelo. Haveria uma só cor e um só grito. Alguns imaginam que só o PT é corrupto; outros que, embora o PT seja, não é justo puni-lo sozinho; há os que acreditam que a saída do PT significa por si só um retrocesso social; e aqueles que imaginam que tirá-lo do poder resolveria todos os problemas.
Escolher um lado cegamente diante de um cenário tão cheio de detalhes, nuances, idas e vindas é assumir, sim, uma postura ideológica. Porque racionalmente não é possível ter confiança irrestrita nem no PT nem nos que fazem oposição a ele. As dúvidas são senhoras respeitáveis desses tempos. É perigoso ter certezas absolutas quando tantos interesses estão em jogo. Falar em golpe midiático, em golpe do Judiciário, em estado de exceção é fechar um diagnóstico às cegas. É preciso mais seriedade, mais honestidade e menos personalismo para encarar uma crise como esta. O próprio umbigo - ou o próprio olhar - não pode ser o único ponto de referência.
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