FOLHA DE SP - 02/10
Melhor desconfiar da banalidade; talvez ela seja o disfarce que permite ao horror passear entre nós
Durante o fim de semana, assisti a "O Protetor", de Antoine Fuqua, com Denzel Washington.
Imaginava que não fosse nenhuma obra-prima, e de fato não é. Mas, para um público numeroso (do qual faço parte), o que se sabe da história pelo trailer torna o filme irresistível.
Robert McCall vive a rotina um pouco aflitiva de um solitário que trabalha como vendedor num supermercado de materiais de construção e passa as noites lendo clássicos num café 24 horas, ao lado da sua casa. Fora essa pequena excentricidade, ele é o retrato da mesmice: sua vida parece se justificar na simples repetição ordeira.
De repente, McCall encontra uma mocinha muito injustiçada e não consegue (mais) ficar de espectador. Claro, aprendemos nessa ocasião que McCall tem um passado "animado" (e certamente sofrido); é desse passado que ele está se escondendo na rotina de seus dias.
Quando McCall sai de sua tranquila aposentadoria entendemos um sentido e um charme diferentes da famosa frase "você não sabe com quem está falando": a ameaça não se refere apenas (estupidamente) a algum privilégio social, mas é um jeito de dizer que podemos ser bem diferentes do que aparentamos ser.
Lembre-se do Hulk: "Você não quer me ver irritado"¦". E lembre-se de Glenn Ford em "The Fastest Gun Alive", o clássico de Russell Rouse de 1956 (trad. "Gatilho Relâmpago"--mamma mia!), em que um grande pistoleiro se torna comerciante de secos e molhados até que"¦etc.
Nosso pensamento moral é livre como nunca foi: cada um pode decidir o que é, para ele, certo ou errado, sem obedecer necessariamente ao que mandam o figurino, a lei e os costumes da cidade e dos tempos. A liberdade moral moderna entra facilmente em conflito com a administração pública da justiça, que pode ser corrupta, preguiçosa e mesmo injusta.
Esse conflito, que todos vivemos um dia, resolve-se na figura do justiceiro, que age segundo suas convicções morais, sem esperar que a lei instituída saia de sua letargia.
Nota: não pense que o justiceiro seja uma invenção de Hollywood. Ele existe desde os começos da liberdade moral na nossa cultura: Robin Hood é uma lenda do século 13.
Enfim, as vítimas, em geral, estão ou deveriam estar sempre a favor do justiceiro e contra o legalismo um pouco covarde de quem nunca coloca as mãos na massa. Se você estiver em apuros na Síria ou no Iraque de hoje, você vai contar com os bombardeios dos aliados ocidentais e rezar para que nunca o Brasil consiga um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Mas o que mais me seduz em "O Protetor" e narrativas análogas não é tanto o charme do justiceiro quanto o sonho de uma virada, de uma decisão ou de um gesto que, de repente, tornem o cotidiano extraordinário e atribuam à nossa vida comum a intensidade de uma ficção.
No filme, um detalhe narrativo salienta essa possibilidade de transformar o cotidiano numa épica: claro, se o inimigo vem com uma arma, McCall pode virá-la contra ele, mas, em geral, ele só combate com objetos de todos os dias, do saca-rolha à broca elétrica.
O segredo de uma vida que valha a pena consiste em viver nosso cotidiano como uma aventura. Para isso, não é preciso matar mafiosos e salvar donzelas (até porque, às vezes, não há donzelas, embora os mafiosos estejam em toda parte).
Em suma, o cotidiano não exige nosso heroísmo (ou super-heroísmo) para mostrar uma face menos trivial e mais intensa. Só que, cuidado: nem sempre essa outra face é divertida. No fim de semana, também assisti a "Miss Violence", de Alexandros Avranas, que é uma obra-prima, imperdível (atenção: não é para crianças, e não é o caso de levar sua filha de 14 anos sob pretexto de que ela é madura).
"Miss Violence" nos leva para o cotidiano de uma família aparentemente muito "normal", mas na qual, desde o começo, um acidente nos sugere que nem tudo o que brilha é ouro. Nenhum spoiler: é preciso que a descoberta do sinistro e do horror seja lenta, gradual.
Só algumas conclusões:
1) O cotidiano aparentemente insosso (o nosso ou o do nosso vizinho) pode se transformar em conto de fadas, mas pode também revelar um romance de horror, escondido ou envergonhado.
2) Melhor desconfiar da banalidade e não perdoá-la por ela ser comum; pois a banalidade é um disfarce que permite ao horror passear entre nós (para entender como, basta escutar ou ler as palavras de Levy Fidelix no último debate da Record).
Nenhum comentário:
Postar um comentário