O ESTADO DE S.PAULO - 24/08
De dois passamos a três candidatos claramente competitivos, com a entrada de Marina Silva na corrida presidencial. De um governo de Dilma Rousseff ou Aécio Neves é mais fácil saber o que esperar. Já as dúvidas sobre um eventual governo de Marina são certamente maiores. Tal como se colocou na disputa, sua candidatura à Presidência é menos uma construção política e mais um acidente histórico, em que pese a já longa trajetória política da ex-senadora e sua admirável figura pública.
Nada na trajetória anterior do PSB e do grupo que se organizou em torno de Marina indicava a possibilidade de que a aliança entre ambos pudesse ocorrer. O PSB aceitou que a líder da Rede Sustentabilidade se hospedasse temporariamente no partido com a certeza de que Eduardo Campos seria o candidato a presidente. Nem poderia ser de outra maneira: por méritos, ele era o "dono" do partido.
Sem a liderança pessoal de Campos, a incorporação de Marina e seu grupo ao PSB não teria sido possível nem sobrevivido nos meses subsequentes. Trata-se do encontro súbito e inesperado de duas correntes com trajetórias políticas, modos de atuação, referências culturais e mesmo visões de mundo bastante diferentes. De um lado, um partido político de tamanho médio, organizado nacionalmente desde a redemocratização, participante ativo de diversificadas alianças políticas em Estados e municípios, voltado para a conquista de espaços de poder, com responsabilidades de governo, composto por políticos e quadros partidários profissionais e portador de uma sensibilidade política "desenvolvimentista". De outro, um movimento político recente, em busca de formas de organização originais, com escassa aderência ao mundo político institucional, poucos políticos profissionais e expressiva representação de indivíduos pertencentes à classe média mais intelectualizada; menos preocupado, até aqui, em exercer o poder do que em renovar as práticas políticas e repensar os paradigmas do desenvolvimento.
A experiência compartilhada por esses dois grupos tão assimétricos e distintos se limita aos últimos nove meses. Por intenso e produtivo que tenha sido o processo interno de discussão nesse breve período, cabe perguntar se é possível que dele tenham resultado convergências sólidas em torno de uma substantiva agenda de governo em áreas, críticas para o País, nas quais há conhecidas divergências entre os membros da aliança (agronegócio, energia, biotecnologia, etc.). Convergências em torno de diretrizes gerais são suficientes para aprovar um programa conjunto e evitar dissonâncias gritantes numa campanha eleitoral. Não o são para assegurar consistência às políticas de governo. Sob a dura pressão das decisões governamentais e da disputa do poder, vagas convergências tendem a estourar como bolhas de sabão.
Marina tem ao redor de si algumas pessoas de notável capacidade intelectual que lhe poderão ser muito úteis na campanha e num eventual governo. São poucas, porém, e nenhuma delas tem especial gosto pela gestão pública. Cabe, portanto, perguntar: de onde virão os quadros principais de sua administração? Qualquer governo, se quiser responder às expectativas geradas por sua eleição, precisa de quadros que, tecnicamente qualificados, sejam também politicamente afinados entre si e com o(a) presidente, para imprimir às ações de governo uma marca própria e um claro sentido de direção.
Não são necessários milhares, muito menos que sejam militantes partidários, ao contrário do que parece acreditar o PT. Algumas centenas são suficientes, às vezes menos. Mas esses quadros são indispensáveis, caso contrário os ministros, por mais notáveis que sejam, flutuam no ar e as intenções do governo não se traduzem em ações, frustrando expectativas. Para recrutá-los, ajuda muito poder recorrer a grupos já constituídos em experiências de governo anteriores ou em administrações de Estados ou municípios de maior porte governados por um mesmo partido ou uma coalizão de partidos. Falta a Mariana essa base institucional. Além de o PSB ser-lhe terra estranha, o partido não é governo em nenhum Estado grande e mais desenvolvido e tem apenas três prefeituras em cidades maiores. A Rede, por ser nova, nem isso. Esse não é um obstáculo insuperável, mas será possível ultrapassá-lo em poucos meses juntando pessoas de cá e de lá?
Se vencer, Marina chegará à Presidência hospedada num partido que não é o seu (e no qual já disse não pretender ficar) e apoiada na menor coalizão eleitoral desde a eleição de Fernando Collor (hoje os partidos da coligação têm, juntos, 30 deputados e 4 senadores apenas). Ela poderia amenizar esse problema ampliando a sua aliança já para o segundo turno. No entanto, sua tendência a dividir o mundo da política entre as "pessoas de bem" e as demais é prenúncio de dificuldades, não só para ampliar a aliança eleitoral como, principalmente, para compor sua base de sustentação no Congresso. Num caso e noutro, para produzir o resultado esperado as alianças teriam de ser feitas com partidos, e não com indivíduos. A ideia de governar apenas com as "pessoas boas" é aparentemente sedutora do ponto de vista da ética da vida privada, mas ilusória e perigosa quando aplicada à vida pública.
O exercício da Presidência não requer que o incumbente venda seus princípios ao diabo e abandone os objetivos estratégicos de seu governo, mas exige flexibilidade tática para negociar e conviver conflituosamente dia e noite, por pelo menos quatro anos seguidos, com pessoas e grupos de diversos índoles e interesses. Um(a) presidente sem essa aptidão ou ao menos disposição, como se vê no caso de Dilma, tende a produzir mais problemas que soluções.
A candidatura de Marina representa, sem dúvida, uma novidade e abre interessantes perspectivas para o Brasil, todavia traz também uma série de perguntas para as quais não existem respostas fáceis.
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