O GLOBO - 19/06
Responsabilizar exclusivamente as empresas privadas por atos de corrupção, ignorando os agentes da administração pública, é desprezar a Constituição
Após quatro anos de sono profundo, o projeto da Lei Anticorrupção foi despertado pelas manifestações de junho de 2013. Os defensores da Lei 12.846/2013 veem nela um poderoso instrumento de prevenção à corrupção, na crença de que seus mecanismos de compliance servirão de estímulo à integridade corporativa, ao mesmo tempo em que facilitará a investigação de ilícitos, pela oferta de “prêmios” às empresas que decidirem colaborar, através do chamado acordo de leniência, uma espécie de delação premiada corporativa.
A intenção de combater a corrupção que solapa as instituições e impede o progresso é das melhores e com ela compactuamos todos. Porém, em matéria legislativa, a máxima de que “os fins justificam os meios” deve ser vista com cautela.
Inspirada no modelo americano, lá conhecido por FCPA (Foreign Corrupt Practices Act), a Lei Anticorrupção institui pela primeira vez no Brasil a responsabilização objetiva das pessoas jurídicas envolvidas em atos de corrupção, independentemente da responsabilidade individual das pessoas físicas que as compõem.
A inovação esbarra em nosso sistema de garantias constitucionais que prevê, apenas, duas exceções ao caríssimo princípio da culpabilidade, segundo o qual ninguém será responsabilizado senão por dolo ou culpa, quais sejam: a responsabilidade civil objetiva por danos nucleares e a responsabilidade civil objetiva por danos que agentes do Estado causem a terceiros.
É fácil notar que as exceções acima mencionadas se voltam contra o Estado e não contra os seus cidadãos, ao contrário do que ocorre com a responsabilização objetiva da pessoa jurídica de direito privado prevista na Lei Anticorrupção. Esta, além de afrontar o princípio constitucional da culpabilidade, fundamental à manutenção do estado de direito, revela a questionável opção do legislador especial de privilegiar a administração pública, em detrimento da iniciativa privada.
Quanto às punições, limitou-se a Lei Anticorrupção à cominação de sanções de natureza administrativa (imposição de pesadíssimas multas) e cível (perdimento de bens e direitos, suspensão das atividades da empresa e proibição de receber incentivos, subsídios e empréstimos), nada dispondo, contudo, sobre sanções de natureza penal.
Agiu com bom senso o legislador: de fato, eventual responsabilização criminal, na modalidade objetiva que a Lei Anticorrupção propõe, esbarraria em muitos obstáculos dogmáticos, alguns deles intransponíveis!
Mas o bom senso para aí.
Terminada às pressas para atender aos anseios de uma população atônita com a derrocada da ética institucional, a nova lei ignorou solenemente a realidade brasileira — o que é muito comum nos casos de “importações legislativas” — e, entre outras previsões ao estilo naïf, chama a atenção o foco exclusivo sobre as empresas privadas.
Os agentes da administração pública, nacional ou estrangeira, estes não mereceram do legislador sequer um feixe de luz, a despeito de povoarem os noticiários por envolvimento em atos de corrupção, nos quais a iniciativa privada, inúmeras vezes, até por uma questão de sobrevivência, acaba tornando-se refém.
Responsabilizar, exclusivamente, as empresas privadas por atos de corrupção, ignorando a corriqueira prática de agentes inescrupulosos da administração pública de “criar dificuldades para vender facilidades”, além de aumentar a sensação de poder e de impunidade de tais agentes, é tapar o sol com a peneira; é, acima de tudo, desprezar a Constituição democrática do Brasil, que tem entre seus principais fundamentos a igualdade e a valorização do trabalho e da livre iniciativa.
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