O Estado de S.Paulo - 05/04
Dentro de cinco dias me aposento como professor titular da Faculdade de Direito da USP, por força de compulsória ao chegar à sétima década de vida. Foram 45 anos de docência. É hora de olhar para a frente, a partir de como se desenrolou ao longo do tempo o ensino do Direito e em especial da realidade presente.
É antiga a reclamação de o ensino jurídico ser insatisfatório, em "crise permanente", termo em si contraditório. Até 40 ou 50 anos atrás, na expressão de José Garcez Ghirardi, aprendia-se na faculdade, e não pela faculdade, ou seja, o ambiente acadêmico, a convivência, por exemplo, no pátio da São Francisco, propiciava o interesse por assuntos vários, dentre os quais o Direito! Política, sociologia, História, literatura e economia eram campos de curiosidade intelectual suscitados nas conversas entre as aulas, nos bares, nas festas.
"Crise" no ensino do Direito já havia. A deficiência decorria do recurso a métodos expositivos, com análise circunscrita ao universo exclusivo da lei, tendo os professores, especialmente de faculdades privadas, pouca produção científica, muitos apenas profissionais do Direito, promotores, magistrados, advogados, alheios à carreira acadêmica.
O número reduzido de Faculdades de Direito até 1970 levava aos seus bancos alunos com bagagem de estudo fundamental e colegial de qualidade, facilitando a tarefa de fazer pensar o Direito, e não só assimilar manuais descritivos da letra da lei. Pode-se dizer que, se os cursos jurídicos não correspondiam a uma exigência de excelência, se sempre houve "crise" no ensino jurídico, agora, todavia, há um processo de degenerescência crescente.
O aprendizado na faculdade existente no passado com certeza não existe, infelizmente, nas atuais escolas de Direito. Hoje o "conhecimento" se faz por tiras, por sinopses ou resumos mínimos, sendo breve qualquer leitura e o refletir, uma raridade. De 40 anos para cá, a cada passo, o curso de Direito transformou-se em adestramento de massa, com alunos e professores despreparados, tornando-se as faculdades meras fontes arrecadadoras de mensalidades, voltadas antes para o lucro do que para a promoção de estudo aprofundado, na busca da criação de formandos de qualidade.
A situação hoje do estudo do Direito no Brasil confronta, também, com propostas formuladas mais recentemente. Em 2004 o Conselho Nacional de Educação baixou resolução na qual destacava que deveria o ensino privilegiar a pesquisa e a prestação de serviço à comunidade como necessários prolongamentos da atividade de didática, com vista à iniciação científica, mas sem perder a perspectiva de ser o curso de Direito um aprendizado de humanidades e de criação de espírito crítico. Considerava-se, então, que cabia "assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania". Que belo texto!
Mas essa boa intenção desmoronou com a criação incessante de Faculdades de Direito, principalmente na última década. No ano passado o Conselho Federal da OAB conseguiu um acordo para estancar temporariamente a autorização de mais faculdades. Passa-se agora à tentativa de estabelecer um novo marco regulatório do ensino do Direito.
A Associação Brasileira de Ensino do Direito denunciou recentemente a costumeira existência de salas de aula superlotadas, pagamento vil aos professores, no sistema hora-aula, com perda da dignidade da docência superior. Hoje, como ressaltado, não mais se tem o aprendizado na faculdade, prevalecendo a comercialização do ensino, com a admissão indiscriminada de alunos despreparados, vindos do secundário sem o costume de pensar, ler, escrever, criticar, questionar.
Diante da massificação do ensino jurídico, impõem-se algumas medidas para o correto aproveitamento do curso por estes alunos merecedores de mais atenção, vítimas e não culpados da má formação que tiveram. Sugiro, então, a adoção das seguintes linhas:
Aulas diárias de Português, Lógica e História das Ideias e Inglês no primeiro ano, ao lado das disciplinas também fundamentais, como Introdução à Ciência do Direito, Sociologia, Ciência Política.
Efetividade da exigência de carreira universitária para os professores, com realização de concursos de ingresso à docência, tendo por requisito a titulação reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC).
Ensino participativo, com leitura e discussão de textos e estudos de casos, para incentivar a reflexão sobre o Direito, para que o aluno seja um dos artífices do próprio conhecimento. Para tanto o aluno precisa querer não apenas um diploma, mas conhecer e discutir o Direito. O professor não deve tão só saber uma aula a mais que o aluno, cumpre-lhe pesquisar, confrontar ideias, debater com os alunos os textos que escolhe para leitura. As classes devem ser, no máximo, de 50 alunos.
Fechamento das instituições que não correspondam à avaliação do MEC.
A criação de mais faculdades não deve sequer ser pensada. Com mais de 1.200 faculdades e de 600 mil alunos, não há massa crítica suficiente para, com seriedade, preencher a função de professor capacitado. Os resultados do Exame de Ordem, com 80% ou mais de reprovação, mostram a precariedade do ensino do Direito.
Olhar para a frente significa esperança: acreditar em melhoria do ensino do Direito, acima das condições objetivas, com avanços a partir do marco regulatório em elaboração.
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