O Estado de S.Paulo - 27/03
Eis que, de repente, assistíamos às "jornadas de junho". Para muitos, as manifestações apontadas como as "jornadas de junho" passaram a ser um novo marco na análise da crise brasileira.
Sem carregar símbolos e desencadeadas sem outros objetivos além da redução de centavos no preço das passagens de transporte urbano, apontou-se, com certa razão, que essas manifestações evidenciaram o descompasso entre a sociedade e o sistema político. Foi assim que toda a classe política as interpretou, incluído o Palácio do Planalto.
Foi preciso que multidões saíssem às ruas aqui e ali, mas especialmente no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília, para que se tomasse consciência de que alguma coisa está errada. Não se discutiu o que errado estaria e nada se fez.
Sendo as manifestações transformadas em "jornadas", perdeu-se a perspectiva histórica e deixou-se de lado o fato de que, há muito tempo, em algumas eleições, desde a República Risonha e Franca de 1946, o eleitorado tem manifestado sua larga distância do sistema político. Porcentagens de 20% ou bem mais de votos em branco e nulos para as Casas Legislativas, somadas ao fato de a grande maioria dos eleitores não saber, no dia seguinte, em que nomes votou para senador, deputado ou vereador, sempre foram a evidência, se não a prova de que alguma coisa funcionava mal no sistema.
Preocupados apenas com a crise da atual República corporativo-sindical e com a política rastaquera que é sua marca registrada e nos governa, esquecemo-nos de que há outros fatos que deveriam merecer a nossa atenção. Não os situo no plano daquilo que começa a ser chamado de "guerra cultural". Os fatos a que me refiro, como se repetem aqui e ali, desordenadamente (?), podem indicar a ruptura da solidariedade social e, portanto, até indicar que a ordem está ameaçada. Por quem?
A ação dos "black blocs" chama a atenção porque ocorre para ser registrada pelas câmeras de reportagem. Ou porque reclama ação repressiva da polícia. Poucos repórteres fotográficos conseguem fixar o momento em que um ônibus é incendiado - mas o fato estará entre as muitas notícias policiais, para retratar o clima de violência em que nos precipitamos aos poucos.
Mais do que os "black blocs", a repetição dos incêndios deveria chamar-nos a atenção - é ela o que indica que toda a sociedade está em crise, e não apenas a máquina política. E está numa crise que pode ser terminal, porque os padrões de comportamento e os valores que a conformam não têm mais validade para muitos grupos sociais em qualquer parte do País. Rompeu-se a solidariedade que, em teoria, deveria manter coesa a sociedade.
Os incêndios costumam acontecer nas periferias das grandes cidades. A causa? Qualquer uma. Uma desapropriação judicial, a repressão de uma manifestação de rua, uma ação contra o narcotráfico, se um jovem morreu ou foi ferido, ao que se diga, por um policial militar, ou se foi preso. Para vingar o ocorrido não se agride apenas um ou mais policiais militares, mas também um ônibus com passageiros, um caminhão, um carro estacionado ou que passe pelo local da revolta. Em certa ocasião, a Polícia Militar deteve o acusado de haver assaltado um policial militar em Campinas. A mãe do detido reuniu um grupo de amigos e pneus foram incendiados, impedindo durante horas o acesso ao Aeroporto de Viracopos e ao Sistema Anhanguera-Bandeirantes. Numa favela do Rio de Janeiro, uma menina foi ferida, dentro de casa, por uma bala perdida durante um tiroteio entre traficantes. Era preciso reagir! Incendiaram-se a Unidade de Polícia Pacificadora e um ou dois ônibus.
Esses fatos não acontecem apenas em grandes cidades, convocados pelas redes sociais. Registram-se aqui e ali, sem coordenação aparente, se e quando há uma oportunidade para protestar, para que alguém exerça uma vendeta - não para exigir justiça ou lavar a honra (?) do clã.
Curiosamente, não desperta a atenção dos que supõem estar desvendando o sentido das coisas o fato de que, apesar de se repetirem praticamente todos os dias, o alvo preferencial das ações são ônibus que servem à população das periferias e o trânsito em vias que a elas dão acesso. O que, mais curiosamente ainda, faz que a vendeta atinja apenas as populações carentes de transporte, deixando-as mais carentes de transporte! Ou não? Do que se poderia concluir que os que sofrem com a falta de "mobilidade" - termo que começa a ganhar foros de problema político-urbanístico porque a Copa do Mundo está aí - decidiram prejudicar-se para manifestar a sua raiva! Sherlock Holmes diria ao dr. Watson que essa conclusão não faz sentido.
Atentemos para o que ocorreu no Estado de São Paulo, ônibus e carros sendo incendiados em diferentes cidades praticamente ao mesmo tempo. As autoridades trabalham com a hipótese de que essa ação tenha sido represália do crime organizado em protesto pela bem-sucedida operação policial contra o tráfico de drogas. Que tenha sido. E as demais, as ações aparentemente isoladas, "individuais"?
Se a lógica de Holmes corresponde à dos fatos, será possível enquadrar todos os incêndios na hipótese policial? Se for possível, o desafio ao Estado é maior do que pensamos e o governo parece não ter meios de impedir que os incêndios continuem quando e onde o crime organizado quiser. Contudo, se Holmes estiver errado, a crise é bem maior do que um grande enfrentamento polícia x crime. Maior porque ela é da sociedade, porque os incêndios indicam, como assinalado de início, que os valores em torno dos quais, como se núcleos fossem, se articula a solidariedade social não têm mais o caráter "coercitivo" (Durkheim) que permite a unidade do todo.
Haverá quem imagine que, qual raio num dia de sol, possa ocorrer um "incêndio geral" que nem todos os governos poderão controlar. E haverá quem aposte nisso.
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