Os governantes serão compelidos a escolher se promovem um ajuste rápido ou gradual nos preços administrados
Dado o calendário, estamos em plena temporada de relembrar o golpe de estado de 1964. O colapso da democracia, em um ambiente doméstico conturbado e com o mundo dominado pela lógica da Guerra Fria, foi facilitado pela inflação, que contribuiu fortemente para jogar a classe média contra o governo.
Pode-se argumentar, de fato, que ao retirar apoio ao Plano Trienal - plano de estabilização (com componentes bem ortodoxos) elaborado por seu ministro de Planejamento, Celso Furtado - o governo Goulart teria abandonado sua melhor chance de compatibilizar uma agenda de reformas estruturais, em especial a agrária, com um mínimo de estabilidade macroeconômica, o que teria favorecido aqueles que conspiravam contra a democracia.
Um dos fatores que levaram ao abandono do Plano Trienal foi exatamente a inflação corretiva, que era o nome dado ao impacto do reajuste de preços previamente controlados sobre os índices inflacionários. Desde os anos 1940, quando a inflação brasileira começou a mostrar sua face, sucessivos governos lançaram mão de controles parciais de preços para tentar segurar a carestia . Entre esses geralmente encontravam-se itens de alta sensibilidade política, como energia, transportes urbanos, alimentos e combustíveis. Subsídios ao consumo não são isentos de custos; só os subsídios cambiais à importação de petróleo e trigo equivaliam a mais de 20% do déficit público no início dos anos 60. Além disso, claro, os subsídios distorcem preços relativos e pioram a alocação de fatores.
O Plano Trienal foi abandonado quando, sob pressão de seu partido, o PTB, e das centrais sindicais, o governo aceitou aumentar o salário do funcionalismo em 70% (havia proposto 40%). A partir de meados de 1963 o governo Goulart optou por postergar novas tentativas de estabilização e priorizar a agenda de reformas. O triste desfecho da história é bem conhecido.
Fazendo um fast forward para o momento atual, nos vemos novamente às voltas com o problema da inflação reprimida (e também a perspectiva da inflação corretiva), embora em níveis mais modestos do que os dos anos 60, e em uma conjuntura política definitivamente muito mais saudável, com uma democracia vigorosa.
Ainda que se trate de ordem de grandeza menor, e que o contexto político seja bem distinto, o atual problema de inflação reprimida, bem como as perspectivas de uma aceleração inflacionária corretiva, complica sobremaneira o manejo da política monetária. Isto porque cria uma camada adicional de incerteza sobre a dinâmica dos preços, qual seja, sobre o eventual processo de reajustes de itens administrados.
Os economistas do Brasil Plural estimam que há atualmente cerca de 1,2 ponto percentual de inflação que não aparece no IPCA por conta da repressão de preços. Incluídos nessa estimativa estão o subsídio ao consumo de energia elétrica (0,65 ponto percentual), tarifas de ônibus urbano (0,13 p.p.) e gasolina (0,33 p.p.) com efeito secundário sobre o etanol (0,08 p.p.). Ressalte-se que não se questiona a qualidade nem confiabilidade do IPCA como índice, mas apenas que este, e outros, de certa forma subestimam a efetiva dinâmica inflacionária por conta dos controles de preços. Caso esses preços fossem ajustados de uma vez, no momento atual, a inflação publicada, em vez dos 5,7% observados em fevereiro, estaria em 6,9%, um patamar elevado, acima do intervalo de tolerância em torno da meta de 4,5%, mas corrigível, com as políticas de demanda adequadas.
Basicamente os governantes serão compelidos a escolher se promovem um ajuste rápido ou gradual nos preços administrados. Isso está implícito, por exemplo, no tratamento dado aos reajustes esperados para a energia elétrica, que só devem começar a partir de 2015, mas a um ritmo até agora incerto.
Podemos ter um ajuste gradualista - pois haveria custo político relevante em se promover uma guinada abrupta na questão dos preços administrados. Um ajuste gradualista tenderia a se estender por vários anos, o que, dado o ponto de partida, turvaria as perspectivas de convergência da inflação para a meta, possivelmente ao longo de todo o mandato presidencial. Por sua vez, com uma correção rápida, teríamos uma corcova inflacionária mais pronunciada em 2015, mas com perspectivas melhores para os anos seguintes.
No entanto, a opção final sobre a estratégia de ajuste vai depender do desenho global da política econômica e não apenas da política de controle da inflação. Vale notar que os subsídios ao consumo, agora como na década de 60, têm impacto fiscal, que pode ser substancial - consultorias especializadas estimam que o subsídio ao consumo de energia pode custar R$ 63 bilhões, quase tanto quanto o que está atualmente orçado para o Bolsa Família e o Ministério da Educação somados, e 64% da meta para o superávit primário.
Em ambos os cenários, o BC teria um desafio redobrado na tarefa de reancorar as expectativas de inflação. Uma alternativa seria anunciar de antemão a trajetória esperada de convergência para os 4,5%, mesmo que em ritmo gradual, com vistas a promover a convergência durante o mandato presidencial (idealmente até apontando para uma nova meta, abaixo de 4,5%, que seria mais próxima do padrão observado em países com estabilidade consolidada, com um intervalo de tolerância mais estreito). A capacidade de acomodar mais esse choque dependeria, porém, de um reforço institucional, para o que a autonomia formal do BC seria contribuição importante.
Evidentemente, em um primeiro momento o realismo tarifário implicaria compressão do poder de compra das famílias. Isso teria um efeito contracionista sobre o consumo. É bem plausível, diante desse pano de fundo, que a combinação de dados de inflação e crescimento em 2015 seja pior em um contexto de ajuste rápido dos preços administrados do que em um de gradualismo, mas que os preços de ativos, que refletem visões sobre o futuro, tenham desempenho bem mais favorável.
Dado o calendário, estamos em plena temporada de relembrar o golpe de estado de 1964. O colapso da democracia, em um ambiente doméstico conturbado e com o mundo dominado pela lógica da Guerra Fria, foi facilitado pela inflação, que contribuiu fortemente para jogar a classe média contra o governo.
Pode-se argumentar, de fato, que ao retirar apoio ao Plano Trienal - plano de estabilização (com componentes bem ortodoxos) elaborado por seu ministro de Planejamento, Celso Furtado - o governo Goulart teria abandonado sua melhor chance de compatibilizar uma agenda de reformas estruturais, em especial a agrária, com um mínimo de estabilidade macroeconômica, o que teria favorecido aqueles que conspiravam contra a democracia.
Um dos fatores que levaram ao abandono do Plano Trienal foi exatamente a inflação corretiva, que era o nome dado ao impacto do reajuste de preços previamente controlados sobre os índices inflacionários. Desde os anos 1940, quando a inflação brasileira começou a mostrar sua face, sucessivos governos lançaram mão de controles parciais de preços para tentar segurar a carestia . Entre esses geralmente encontravam-se itens de alta sensibilidade política, como energia, transportes urbanos, alimentos e combustíveis. Subsídios ao consumo não são isentos de custos; só os subsídios cambiais à importação de petróleo e trigo equivaliam a mais de 20% do déficit público no início dos anos 60. Além disso, claro, os subsídios distorcem preços relativos e pioram a alocação de fatores.
O Plano Trienal foi abandonado quando, sob pressão de seu partido, o PTB, e das centrais sindicais, o governo aceitou aumentar o salário do funcionalismo em 70% (havia proposto 40%). A partir de meados de 1963 o governo Goulart optou por postergar novas tentativas de estabilização e priorizar a agenda de reformas. O triste desfecho da história é bem conhecido.
Fazendo um fast forward para o momento atual, nos vemos novamente às voltas com o problema da inflação reprimida (e também a perspectiva da inflação corretiva), embora em níveis mais modestos do que os dos anos 60, e em uma conjuntura política definitivamente muito mais saudável, com uma democracia vigorosa.
Ainda que se trate de ordem de grandeza menor, e que o contexto político seja bem distinto, o atual problema de inflação reprimida, bem como as perspectivas de uma aceleração inflacionária corretiva, complica sobremaneira o manejo da política monetária. Isto porque cria uma camada adicional de incerteza sobre a dinâmica dos preços, qual seja, sobre o eventual processo de reajustes de itens administrados.
Os economistas do Brasil Plural estimam que há atualmente cerca de 1,2 ponto percentual de inflação que não aparece no IPCA por conta da repressão de preços. Incluídos nessa estimativa estão o subsídio ao consumo de energia elétrica (0,65 ponto percentual), tarifas de ônibus urbano (0,13 p.p.) e gasolina (0,33 p.p.) com efeito secundário sobre o etanol (0,08 p.p.). Ressalte-se que não se questiona a qualidade nem confiabilidade do IPCA como índice, mas apenas que este, e outros, de certa forma subestimam a efetiva dinâmica inflacionária por conta dos controles de preços. Caso esses preços fossem ajustados de uma vez, no momento atual, a inflação publicada, em vez dos 5,7% observados em fevereiro, estaria em 6,9%, um patamar elevado, acima do intervalo de tolerância em torno da meta de 4,5%, mas corrigível, com as políticas de demanda adequadas.
Basicamente os governantes serão compelidos a escolher se promovem um ajuste rápido ou gradual nos preços administrados. Isso está implícito, por exemplo, no tratamento dado aos reajustes esperados para a energia elétrica, que só devem começar a partir de 2015, mas a um ritmo até agora incerto.
Podemos ter um ajuste gradualista - pois haveria custo político relevante em se promover uma guinada abrupta na questão dos preços administrados. Um ajuste gradualista tenderia a se estender por vários anos, o que, dado o ponto de partida, turvaria as perspectivas de convergência da inflação para a meta, possivelmente ao longo de todo o mandato presidencial. Por sua vez, com uma correção rápida, teríamos uma corcova inflacionária mais pronunciada em 2015, mas com perspectivas melhores para os anos seguintes.
No entanto, a opção final sobre a estratégia de ajuste vai depender do desenho global da política econômica e não apenas da política de controle da inflação. Vale notar que os subsídios ao consumo, agora como na década de 60, têm impacto fiscal, que pode ser substancial - consultorias especializadas estimam que o subsídio ao consumo de energia pode custar R$ 63 bilhões, quase tanto quanto o que está atualmente orçado para o Bolsa Família e o Ministério da Educação somados, e 64% da meta para o superávit primário.
Em ambos os cenários, o BC teria um desafio redobrado na tarefa de reancorar as expectativas de inflação. Uma alternativa seria anunciar de antemão a trajetória esperada de convergência para os 4,5%, mesmo que em ritmo gradual, com vistas a promover a convergência durante o mandato presidencial (idealmente até apontando para uma nova meta, abaixo de 4,5%, que seria mais próxima do padrão observado em países com estabilidade consolidada, com um intervalo de tolerância mais estreito). A capacidade de acomodar mais esse choque dependeria, porém, de um reforço institucional, para o que a autonomia formal do BC seria contribuição importante.
Evidentemente, em um primeiro momento o realismo tarifário implicaria compressão do poder de compra das famílias. Isso teria um efeito contracionista sobre o consumo. É bem plausível, diante desse pano de fundo, que a combinação de dados de inflação e crescimento em 2015 seja pior em um contexto de ajuste rápido dos preços administrados do que em um de gradualismo, mas que os preços de ativos, que refletem visões sobre o futuro, tenham desempenho bem mais favorável.
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