FOLHA DE SP - 06/02
O que os shoppings têm de mágico e desejável? Qual é seu valor simbólico para os jovens do 'rolezinho'?
Na Europa da minha juventude, não havia shopping centers --e, se não me engano, isso não mudou. Havia, isso sim, lojas de departamentos: a Rinascente em Milão, Harrods em Londres e, em Paris, o Bazar de l'Hôtel de Ville, a Samaritaine, as Galeries Lafayette, o Bon Marché.
As lojas de departamentos são os primeiros grandes templos do consumo, como Zola contou deliciosamente no "Paraíso das Damas". Nelas, pode haver um café/restaurante no último andar, mas não há uma área de alimentação, nem cinemas, nem teatros: são lugares funcionais --para comprar, não para passear. Ninguém, em Milão, teria a ideia de dar um rolê na Rinascente. O rolê seria no Corso Vittorio Emanuele, fora da loja.
Em Manhattan também há lojas de departamentos (Saks, Lord and Taylor, Bergdorf, Barneys, Bloomingdale's, Macy's etc.), mas não são lugares para rolê --eventualmente, para expedições quase militares em dia de liquidações anuais. O único shopping center de Manhattan é o Manhattan Mall, do qual, aliás, os nova-iorquinos tendem a fugir.
Nas áreas suburbanas e rurais dos EUA, os shopping centers se parecem com os do Brasil. Mesmo assim, foi no Brasil que eu aprendi que dar rolês em shopping é um programa. Passeamos pelos shoppings, e não é para comprar nem para lamber vitrines. Por quê, então?
Uma amiga me diz que ela passeia pelos shoppings para ter a impressão de estar fora do Brasil, ou seja, num espaço público que não seja ansiógeno e violento. Claro, é uma ilusão fugaz; basta olhar para as vitrines para constatar que tudo é brutalmente mais caro do que no exterior --pelos impostos, pela produtividade medíocre ou pela corrupção endêmica, tanto faz. Mesmo assim, insiste minha amiga, a ilusão de civilidade é um alívio.
Hoje, à brutalidade de impostos, corrupção e mediocridade produtiva acrescentam-se os "rolezinhos" dos jovens da periferia. O que eles querem, afinal?
Talvez eles gostem de apavorar. Não seria de se estranhar. É um axioma: para quem vive na incerteza (de seu status, do reconhecimento dos outros, de seu lugar no mundo), apavorar é um jeito de encontrar no medo dos outros uma confirmação de sua própria relevância. Apavoro, logo existo: espelho-me na preocupação dos seguranças e na cara fechada dos clientes que voltam correndo para o estacionamento.
Mas apavorar é um efeito colateral. Os jovens dos "rolezinhos" pedem sobretudo uma bola branca: a admissão ao clube. A prova, a roupa que eles preferem e que grita para ser reconhecida como luxo.
Tudo bem, alguém perguntará, eles pedem acesso a quê? À classe privilegiada? Ao consumo de quem tem grana?
Não acredito em nada disso, aposto que eles pedem acesso ao próprio lugar para o qual eles vão: eles pedem acesso ao shopping. O que esse lugar tem de mágico? De desejável? Qual é seu valor simbólico?
Na nossa cultura (justamente pela quase inexistência de espaços públicos minimamente frequentáveis, ou seja, pelo horror que a rua é para todos, ricos e pobres), os shoppings integram a lista histórica dos refúgios.
Ao longo da história, nem todos os refúgios foram democráticos. Na época de minha adolescência, discutia-se para saber quem ganharia um lugar no refúgio antiatômico (os critérios eram variados, mas, por exemplo, a idade avançada não era um ponto a favor). Mais tarde se discutia para saber quem subiria na única nave espacial que levaria um grupo seleto para outro planeta, visto que a morte da Terra ou do Sol era próxima e inelutável --apreciem minha coragem: para as duas seleções, escolher ciências exatas seria uma vantagem considerável.
Mas, antes disso tudo, houve uma época em que os refúgios eram abertos. Por exemplo, as igrejas em épocas de pestilência ou de invasão por exércitos saqueadores: todos podiam entrar. Duvido que eles acreditassem numa intervenção milagrosa que salvasse a todos, mas a própria civilidade do ato de rezar em comum era provavelmente um gesto de resistência contra a barbárie, que reinava lá fora.
Agora, o primeiro refúgio da história foi elitista: na Arca de Noé, era só um casal por espécie, e uma família de humanos, a do próprio Noé.
Falando nisso, como é que funcionou a Arca de Noé? Os lobos, as hienas, os chacais etc. declararam trégua e comeram só sucrilhos durante o tempo das águas ou então, irresistivelmente, eles comiam um cordeiro ou um bezerro de vez em quando?
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