Nessa economia de pouca credibilidade fiscal, qualquer surpresa negativa geraria uma depreciação cambial
A economia brasileira viveu, nos últimos anos, um período de aceleração da inflação e de mudanças profundas na condução de sua política fiscal. Tendo em vista o desafio de se reduzir a inflação num futuro próximo, muito se tem comentado sobre os efeitos da deterioração da política fiscal sobre a política monetária.
A expansão fiscal pode limitar os efeitos da política monetária de duas maneiras distintas. O primeiro efeito restritivo decorre da pressão adicional que é exercida sobre a demanda agregada. Em um processo de convergência de taxas altas de inflação para taxas mais baixas, há, pois, a necessidade de um maior aperto monetário quando este ocorre concomitantemente a uma expansão fiscal. A taxa de juros tem de ser mais alta e os efeitos deflacionários da elevação dos juros serão mais fracos.
Existe, entretanto, uma segunda limitação menos usual, que a literatura econômica trata na teoria fiscal de nível de preços. Sua intuição é simples: o valor real da dívida do governo é sempre igual a soma do fluxo futuro descontado de superávits fiscais. Caso os credores do governo acreditem que não haverá superávits fiscais futuros em montantes suficientes para o pagamento do estoque de dívida, o valor desta, em termos reais, se ajusta para baixo. Tal ajuste pode se dar via aumento do prêmio de risco, que diminui o preço de toda a dívida, ou via aumento da inflação, que deprecia o valor real de toda a dívida nominal. E é bem provável que o ajuste se dê pelos dois canais.
Nessa economia de pouca credibilidade fiscal, qualquer surpresa negativa sobre o superávit fiscal geraria uma depreciação cambial. Como se dá esse efeito sobre o câmbio? A surpresa no aumento dos gastos amplia a desconfiança de que os fluxos futuros de superávits fiscais não farão frente ao estoque corrente de dívida, gerando uma pressão para sua desvalorização em relação a outros ativos reais, como as moedas estrangeiras.
Neste cenário, um aperto monetário, ao aumentar juros e gerar custos fiscais, aprofundaria as dúvidas sobre a solvência do governo. Esse aumento de incerteza, paradoxalmente, subverteria o sinal do efeito da política monetária e faria com que um aumento de juros pressionasse ainda mais a inflação.
Será que essa curiosidade teórica tem alguma aplicação para o mundo real? O professor de Chicago Booth, John Cochrane (National Affairs, 2011) argumenta que esse tipo de modelo será crucial para explicar o comportamento da inflação americana em um futuro próximo. Altos níveis de dívida e expectativas de gastos explosivos do governo com saúde gerariam dúvidas sobre a solvência do governo americano, o que comprometeria a atuação do Federal Reserve. Menos controversa é uma possível interpretação que essa teoria nos dá sobre a dinâmica da política monetária brasileira nos anos de 2002-2003.
A expectativa de alternância de governo em 2002 gerou incertezas profundas sobre a condução da política fiscal futura, independentemente da condução da política fiscal daquele ano. Essa deterioração das expectativas futuras não poderia ser revertida por ações incisivas de política monetária ou fiscal naquele momento. Mas a redução de incerteza no ano seguinte, já no governo Lula, permitiria o aperto de política monetária e o processo desinflacionário que se seguiu.
Resta saber se esse tipo de restrição à política monetária tornou-se relevante atualmente no Brasil. É difícil negar que a longa sequência de más notícias na área fiscal tem aumentado o prêmio de risco dos títulos do governo e pressionado o câmbio. Mas o que se alega é que, por enquanto, a política monetária não corre o risco de ficar submetida a uma restrição tão severa porque os níveis de dívida pública líquida ainda são baixos, tanto por padrões históricos quanto pelos observados em outros países.
O nível de endividamento é certamente importante. De maneira geral, para que se duvide da sustentabilidade da dívida, é necessário que existam altos níveis de dívida e, consequentemente, que a necessidade de ajuste fiscal seja grande e de difícil implementação. Entretanto, existe a possibilidade de que a credibilidade da política fiscal se deteriore tanto que, mesmo com níveis baixos de dívida líquida, haja perda da expectativa de solvência. Dado um histórico relativamente recente de não-pagamento de dívida, a deterioração contínua do superávit primário e a exploração abusiva de loopholes e de contabilidade criativa para atingir metas fiscais, por exemplo, podem levar os agentes a rever drasticamente suas previsões de resultados fiscais futuros. E essas novas projeções mais pessimistas podem deflagrar uma crise fiscal como a descrita acima, mesmo com a dívida pública líquida em níveis surpreendentemente baixos. Em casos extremos de falta de credibilidade do formulador de política fiscal, nem mesmo um ajuste drástico de gastos correntes seria capaz de reverter o pessimismo sobre a solvência do governo.
Como garantir que o BC não ficará restrito pela falta de credibilidade da autoridade fiscal no processo desinflacionário requerido para a convergência para a meta de inflação? Embora uma resposta mais completa fuja ao escopo desse artigo, é fácil notar que algumas precauções se seguem naturalmente do que foi argumentado acima. O governo deveria apresentar uma programação fiscal crível que dê respaldo à expectativa de solvência intertemporal, permitindo percepção clara de seus comprometimentos e recursos futuros. Mas, sem que as próprias autoridades responsáveis pela área fiscal tenham credibilidade, é difícil que o anúncio dessa programação possa ter o efeito almejado sobre as expectativas.
A economia brasileira viveu, nos últimos anos, um período de aceleração da inflação e de mudanças profundas na condução de sua política fiscal. Tendo em vista o desafio de se reduzir a inflação num futuro próximo, muito se tem comentado sobre os efeitos da deterioração da política fiscal sobre a política monetária.
A expansão fiscal pode limitar os efeitos da política monetária de duas maneiras distintas. O primeiro efeito restritivo decorre da pressão adicional que é exercida sobre a demanda agregada. Em um processo de convergência de taxas altas de inflação para taxas mais baixas, há, pois, a necessidade de um maior aperto monetário quando este ocorre concomitantemente a uma expansão fiscal. A taxa de juros tem de ser mais alta e os efeitos deflacionários da elevação dos juros serão mais fracos.
Existe, entretanto, uma segunda limitação menos usual, que a literatura econômica trata na teoria fiscal de nível de preços. Sua intuição é simples: o valor real da dívida do governo é sempre igual a soma do fluxo futuro descontado de superávits fiscais. Caso os credores do governo acreditem que não haverá superávits fiscais futuros em montantes suficientes para o pagamento do estoque de dívida, o valor desta, em termos reais, se ajusta para baixo. Tal ajuste pode se dar via aumento do prêmio de risco, que diminui o preço de toda a dívida, ou via aumento da inflação, que deprecia o valor real de toda a dívida nominal. E é bem provável que o ajuste se dê pelos dois canais.
Nessa economia de pouca credibilidade fiscal, qualquer surpresa negativa sobre o superávit fiscal geraria uma depreciação cambial. Como se dá esse efeito sobre o câmbio? A surpresa no aumento dos gastos amplia a desconfiança de que os fluxos futuros de superávits fiscais não farão frente ao estoque corrente de dívida, gerando uma pressão para sua desvalorização em relação a outros ativos reais, como as moedas estrangeiras.
Neste cenário, um aperto monetário, ao aumentar juros e gerar custos fiscais, aprofundaria as dúvidas sobre a solvência do governo. Esse aumento de incerteza, paradoxalmente, subverteria o sinal do efeito da política monetária e faria com que um aumento de juros pressionasse ainda mais a inflação.
Será que essa curiosidade teórica tem alguma aplicação para o mundo real? O professor de Chicago Booth, John Cochrane (National Affairs, 2011) argumenta que esse tipo de modelo será crucial para explicar o comportamento da inflação americana em um futuro próximo. Altos níveis de dívida e expectativas de gastos explosivos do governo com saúde gerariam dúvidas sobre a solvência do governo americano, o que comprometeria a atuação do Federal Reserve. Menos controversa é uma possível interpretação que essa teoria nos dá sobre a dinâmica da política monetária brasileira nos anos de 2002-2003.
A expectativa de alternância de governo em 2002 gerou incertezas profundas sobre a condução da política fiscal futura, independentemente da condução da política fiscal daquele ano. Essa deterioração das expectativas futuras não poderia ser revertida por ações incisivas de política monetária ou fiscal naquele momento. Mas a redução de incerteza no ano seguinte, já no governo Lula, permitiria o aperto de política monetária e o processo desinflacionário que se seguiu.
Resta saber se esse tipo de restrição à política monetária tornou-se relevante atualmente no Brasil. É difícil negar que a longa sequência de más notícias na área fiscal tem aumentado o prêmio de risco dos títulos do governo e pressionado o câmbio. Mas o que se alega é que, por enquanto, a política monetária não corre o risco de ficar submetida a uma restrição tão severa porque os níveis de dívida pública líquida ainda são baixos, tanto por padrões históricos quanto pelos observados em outros países.
O nível de endividamento é certamente importante. De maneira geral, para que se duvide da sustentabilidade da dívida, é necessário que existam altos níveis de dívida e, consequentemente, que a necessidade de ajuste fiscal seja grande e de difícil implementação. Entretanto, existe a possibilidade de que a credibilidade da política fiscal se deteriore tanto que, mesmo com níveis baixos de dívida líquida, haja perda da expectativa de solvência. Dado um histórico relativamente recente de não-pagamento de dívida, a deterioração contínua do superávit primário e a exploração abusiva de loopholes e de contabilidade criativa para atingir metas fiscais, por exemplo, podem levar os agentes a rever drasticamente suas previsões de resultados fiscais futuros. E essas novas projeções mais pessimistas podem deflagrar uma crise fiscal como a descrita acima, mesmo com a dívida pública líquida em níveis surpreendentemente baixos. Em casos extremos de falta de credibilidade do formulador de política fiscal, nem mesmo um ajuste drástico de gastos correntes seria capaz de reverter o pessimismo sobre a solvência do governo.
Como garantir que o BC não ficará restrito pela falta de credibilidade da autoridade fiscal no processo desinflacionário requerido para a convergência para a meta de inflação? Embora uma resposta mais completa fuja ao escopo desse artigo, é fácil notar que algumas precauções se seguem naturalmente do que foi argumentado acima. O governo deveria apresentar uma programação fiscal crível que dê respaldo à expectativa de solvência intertemporal, permitindo percepção clara de seus comprometimentos e recursos futuros. Mas, sem que as próprias autoridades responsáveis pela área fiscal tenham credibilidade, é difícil que o anúncio dessa programação possa ter o efeito almejado sobre as expectativas.
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