Estado de S.Paulo - 31/01
Tia Tâmara zelava tanto por suas joias e baixela de prata que só raramente as usava. Guardava os recipientes e peças na cristaleira da sala, como se fossem troféus de grandes conquistas. Ninguém podia sequer abrir a porta de vidro, nem mesmo tio Adam, o marido de Tâmara. Quando ele recebia amigos, ela mostrava a casa aos visitantes e parava diante da cristaleira, que era o ápice da visita, espécie de apoteose de uma cerimônia da província.
Mas nas minhas visitas, Tâmara ficava tensa, vigilante, me enxotava da sala e me ordenava a catar mangas, jambos e sapotis no quintal. A proibição me impelia à transgressão, e quando Tâmara ia à cozinha, eu me aproximava da cristaleira para espiar os totens de prata. Os talheres, sopeiras e molheiras não me atraíam, mas os caracóis e cavalos-marinhos, sim. Ali, ao meu alcance, pareciam tão perfeitos e vivos, que eu conversava com eles e os acariciava com a ponta dos dedos. Sonhava com o oceano distante, sentia cheiro de maresia e perguntava aos seres marinhos se um dia brincaríamos juntos na beira de uma praia. Eles me olhavam com tristeza, e o brilho da prata esmaecia. Às vezes ficávamos em silêncio, trocando olhares de amigos cativos, até ouvirmos o grito agudo da guardiã do tesouro.
Uma manhã, a cristaleira amanheceu vazia. Inconformada com o roubo, Tâmara injuriava a polícia e o marido, cujo ar blasé a irritava. Meus tios eram primos irmãos, e essa promiscuidade de clã afetava três gerações de parentes, comuns a duas famílias. Tâmara dizia que as peças de prata eram insubstituíveis, evitava entrar na sala nua, o roubo era um desrespeito à memória de sua querida avó, que comprara o tesouro de uma família portuguesa, riquíssima até 1912, mas em franca decadência no decênio seguinte.
De fato, a cristaleira perdera sua magia. O ladrão roubara meus sonhos marítimos, minhas conversas com seres inofensivos, enclausurados numa caixa de vidro. Odiei esse ladrão de devaneios.
Uns dois anos depois do roubo, Tâmara e Adam foram passar o carnaval em Belém. Voltaram a Manaus na noite de uma Quarta-feira de Cinzas. Cansados da viagem de barco e da folia paraense, subiram a escada e entraram no quarto, mas só Adam dormiu. Tâmara - conforme nos contou depois - sentiu o sopro de um milagre, saiu da cama, desceu de mansinho e parou num dos cantos da sala; pensou que estava sonhando e acordou aos gritos o marido, um sonhador inato. Adam desceu a escada com passos de sonâmbulo e viu o que eu veria no dia seguinte: os berloques e as peças da baixela arrumados no mesmo lugar da cristaleira.
Não sei por que, o fascínio pelos pequenos seres prateados arrefeceu. Não me pareciam tão vivos como antes do roubo. Alguma coisa tinha acontecido com eles ou comigo. A infância procurava outras formas de solidão, os devaneios haviam migrado da cristaleira às páginas de um livro, habitados por seres mais verdadeiros.
Tempos depois, tio Ghodor, um dos irmãos de Adam, me revelou essa história: Adam, endividado e desesperado por ter falido mais uma vez, simulou o roubo da prataria. Na verdade, pediu um empréstimo a um agiota e, como garantia, entregou as peças de prata ao usurário. Fez isso à revelia de todos os membros dos dois clãs.
E quem pagou a dívida? Tia Tâmara soube disso?
"Ninguém soube, só eu", disse Ghodor. "Por que eu quitei a dívida: paguei 24 parcelas, com juros absurdos. Quer dizer, paguei para o agiota, porque se desse o dinheiro para Adam, o colecionador de fracassos abriria outro negócio desastroso. E ainda paguei a viagem do casal a Belém, porque teu tio, com aquela pose de magnata bondoso, não tinha dinheiro nem para ir ao Careiro da Várzea. Tâmara é uma alma simples... Não desconfiou de nada. Ela acabou acreditando num milagre. E tu sabes: contra a crença, não há argumentos."
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