O Estado de S.Paulo - 15/12
Vieram me dizer que dei muito mau exemplo à juventude ao contar aqui um episódio em que passei de ano graças ao condenável expediente da cola. Admito que errei - e me ponho de joelhos sobre grãos de milho: Jovens do Brasil que me ledes, não coleis de mim se eu vier de novo a me gabar de haver praticado alguma vilania, estudantil ou não! Melhor fora ter contado a história edificante de meu irmão Otávio: tanto se empenhou ele no preparo de uma cola, que aprendeu a resolver todos os 45 problemas de geometria a serem sorteados no exame. Um tanto frustrado, em vez de fazer a prova o Otávio entregou a esmerada cola à dona Reine, que lhe deu nota 7.
Isso posto, aproveito a genuflexão purgatória para relatar outros malfeitos, na esperança de que sejam tomados como exemplos a jamais seguir. Como aquelas retorcidas carcaças de automóveis que o Detran espalhou por São Paulo, anos atrás, para servirem de advertência aos motoristas imprudentes.
Uma de minhas carcaças assinala o ano em que, aluno do ginasial, eu vivia em escaramuças com a dona Aline, professora de francês, a qual tinha por mim escancarada antipatia, no que, diria o Antônio Houaiss, era amplamente reciprocada. Frangote com fumaças literárias, eu achava intolerável a capacidade que tinha a criatura de esvaziar de qualquer resquício de beleza obras-primas como o poema Le lac, de Lamartine, por ela reduzido a um amontoado de morfemas e semantemas.
O sentimento da professora em relação ao petulante pirralho se devia talvez ao fato de que, tendo passado por uma escola primária onde se ensinava francês, eu tirava de letra o que ela teria a oferecer aos ginasianos, principiantes no idioma. Mais de uma vez fui posto para fora da aula por comportamento inconveniente, mas na hora da prova me saía bem. Um dia, porém, dei a dona Aline a impressão de que ela finalmente me apanhara.
Sentado no miolo da sala, eu dividia o olhar entre a folha da prova e, de esguelha, a mão esquerda em concha. Lá na frente, a professora flagrou o movimento suspeito - e veio vindo entre as fileiras, como quem não quer nada, até chegar à minha carteira e, num bote de cascavel, agarrar a mão que mal tive tempo de fechar. Meninos, trombeteou, vejam a desonestidade do colega de vocês! E me ordenou que abrisse a mão. Abre! Não abro! - até que aceitei abrir, expondo, para delírio da assanhada patuleia em torno, o que havia escrito na palma da mão: CURIOSA!
Propagada em cada canto do colégio, a travessura não contribuiu para melhorar a reputação do aluno que, no ano seguinte, se envolveria em algo mais sério. Dessa vez, com a professora de português, a querida Maria Lúcia Lepecki, de quem, dissolvidas as brumas do entrevero, vim a ser amigo, numa camaradagem alimentada pelos muitos encontros que tivemos em Lisboa, onde ela viveu a maior parte de sua vida.
Adolescente chato, eu tinha o hábito de fazer perguntas que desafiavam o saber da mestra, pouco mais velha que os alunos, e numa dessas, depois de me expulsar da sala, ela caiu em prantos.
Foi o que bastou para alimentar versões mirabolantes do acontecimento, a tal ponto que as aulas foram suspensas e os professores se reuniram para decidir que punição dar ao mau elemento - o qual, alarmado, ficou rodando pelo bairro até tomar coragem de encarar a expulsão que certamente o aguardava.
Já me encaminhava para o sacrifício quando, a 10 metros de onde se aglomeravam os professores, vi um dos inspetores de disciplina, o Luís, erguer um dedo justiceiro. Juro que não premeditei a cena que se seguiu.
"Um momento, por favor!", bradei. "Reconheço o meu erro, assumo a responsabilidade e me suspendo por 15 dias!" Sem dar tempo a reações, bati em retirada, deixando no ar o dedo do Luís. O lance de audácia me valeu a simpatia de professores em número suficiente para evitar a expulsão. Nem por isso escapei da reprovação em quase todas as matérias.
Homem de palavra, cumpri a suspensão que me havia imposto, e passei duas semanas longe do colégio, ou não tão longe assim, a três quarteirões dali, na piscina do Minas Tênis Clube.
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