O Estado de S.Paulo - 05/11
De um modo ainda discreto, mas já dando sinais de retorno, a teoria dos déficits gêmeos, segundo a qual déficits fiscais empurram as transações correntes para déficits, está saindo do terreno pantanoso em que fica até que novas ondas de desequilíbrios macroeconômicos se formem. Já aconteceu inúmeras vezes mundo afora, e, no Brasil, mais recentemente, na segunda metade da década de 90. Agora a recorrente argumentação tem tudo para se repetir.
Como a conjuntura é de deterioração tanto das contas públicas quanto das contas externas, nada pode parecer tão natural quanto vincular uma coisa à outra. É bom, porém, não esquecer que, mesmo depois de consumidas toneladas de energia intelectual, tinta e papel, essa vinculação continua polêmica e inconclusiva.
Na base da teoria estão algumas identidades macroeconômicas contábeis, que se confirmam depois que o processo econômico se completa. O pressuposto é que poupança e investimento se equivalem "ex-post" e, portanto, em condições de equilíbrio macroeconômico, excesso de gasto público, sem a devida compensação por parte da poupança privada doméstica, resultaria em absorção de poupança externa. Ou seja, produção de déficits em transações correntes.
A questão é que identidades econômicas costumam mostrar tudo menos as verdadeiras relações de causalidade entre seus elementos. Dessa peculiaridade, no debate da economia, resultam históricas desavenças entre linhas de pensamento. O desencontro em torno da validade da teoria dos déficits gêmeos é apenas um subproduto da feroz disputa entre os que entendem o investimento como função da poupança e os que consideram justamente o inverso. Versão econômica da eterna e folclórica discórdia em relação ao que vem primeiro, se o ovo ou a galinha, não custa lembrar que, mal comparando, é esse o divisor que separa keynesianos e neoclássicos - ou, em linguagem mais simples, ortodoxos e heterodoxos.
Na economia brasileira de hoje, a poupança é raquítica e o investimento hesita, num cenário de superávits primários cadentes, podendo encolher, em 2013, abaixo de 2%. Ao mesmo tempo, a taxa de desemprego se encontra em níveis historicamente baixos e os déficits em transações correntes mostram trajetória veloz na direção de 4% do PIB. Mas, embora possa parecer óbvio, quem garante que uma contração forte no lado fiscal operaria como um dominó positivo, que arrumaria, quase automaticamente, todas as peças desequilibradas e os déficits gêmeos?
Estudos e mais estudos, abrangendo diversas economias, em diferentes épocas, não conseguiram estabelecer as relações insinuadas pelas identidades contábeis que articulam déficits fiscais e externos. A verdade é que, na busca de comprovar tais relações, o que se conseguiu foi observar que nem sempre é possível encontrar vinculações diretas entre déficit público e déficit externo. Em resumo, uma contração fiscal pode, sim, reduzir a renda e colaborar para esfriar importações, mas, em seguida, exatamente por essa ação, ajudará também a cortar os juros e, em consequência, impulsionar a renda, que pressionará o lado externo.
Uma das conclusões possíveis dessa história é que, diferentemente do que muitos gostariam, a austeridade fiscal não é uma panaceia para os desequilíbrios econômicos. Há situações em que ela pode estar mais do lado dos problemas do que no das soluções. Na questão específica dos supostos déficits gêmeos, a resposta verdadeira para o desequilíbrio externo parece mais próxima do que ocorre com a taxa real de câmbio - e com a situação dos mercados externos - do que diretamente com o que se passa nas contas públicas. Sugere-se levar isso em conta para não correr o risco de se surpreender com uma possível retomada da balança comercial em 2014, ainda que na vigência de resultados fiscais fracos.
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