O GLOBO - 23/09
O veto a biografias não autorizadas estabelece um monopólio que degrada a historiografia do país
A Constituição de 1988 restabeleceu os direitos civis cassados pela ditadura militar, como a liberdade de imprensa e expressão. Mas a Carta ainda não foi capaz de permitir o exercício de prerrogativas plenas de uma efetiva República. A própria liberdade de imprensa só foi sacramentada, do ponto de vista legal — e mesmo assim em parte —, pela histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, tomada em 2009, ao declarar inconstitucional a Lei de Imprensa herdada da ditadura e mantida em vigor por um lapso dos constituintes e legisladores.
O livre acesso à informação é cláusula pétrea da Carta — não pode sequer ser alterado no Congresso.
Mas existe na sociedade um forte viés de autoritarismo, impregnado em usos e costumes, normas e mesmo leis, independentemente de preceitos constitucionais. Pois, apesar da decisão do Supremo, a imprensa continua a enfrentar atos de censura prévia baixados por juízes de instâncias inferiores.
Outro exemplo é o dispositivo existente no Código Civil que condiciona a edição de biografias à autorização do biografado ou descendentes. As implicações negativas da norma são devastadoras. Uma delas é a impossibilidade de se registrar e deixar para a posteridade a vida de personagens importantes na formação do país, em qualquer ramo de atividade. Permite-se a interdição de registros de época, em prejuízo inclusive dos historiadores e pesquisadores do futuro.
Como denunciou recente documento lançado por intelectuais, “um país que só permite a circulação de biografias autorizadas reduz a sua historiografia à versão dos protagonistas da vida política, econômica, social e artística”. Cria-se “uma espécie de monopólio da História, típico de regimes totalitários”. Só há uma versão, “chapa-branca”.
Dessa forma, tem sido sonegado, por exemplo, o relato da vida do poeta Manoel Bandeira, dos escritores Mário de Andrade e Guimarães Rosa. O cantor e compositor Roberto Carlos, um dos arautos desta censura, conseguiu impedir a circulação de sua biografia e faz campanha contra iniciativas para revogar o artigo restritivo do Código Civil.
É uma excrescência a regra. Ela induz, inclusive, o funcionamento de um “mercado” de negociação de “alvarás” de liberação de biografias.
Como deve ser no jornalismo, não pode haver censura prévia. Publicada a reportagem (ou biografia), os que se sentirem atingidos que recorram à Justiça. É preciso seguir o padrão existente em muitos países, em que há biografias “autorizadas” e “não autorizadas”. E com reclamações posteriores no foro devido, os tribunais. Quando existem.
O alegado “direito à privacidade” é argumento frágil para justificar o veto a que a historiografia do país seja enriquecida. Já não bastasse o poder de censura concedido a biografados e herdeiros ser um atentado à Constituição.
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