O Estado de S.Paulo - 22/09
Tabelar lucro não é um bom negócio em economias capitalistas. O governo exorbitar de seu papel e invadir decisões que, em nome da eficiência em gestão, cabem unicamente ao investidor privado também não é. Essas sentenças de bom senso estão no cerne do fracasso do leilão da Rodovia BR-262. E, se o modelo não mudar, vai prejudicar os resultados de licitações futuras de rodovias, ferrovias e portos.
Até agora, o que o governo Dilma Rousseff tem feito é tentar aplicar regras do socialismo em investimentos privados e executados sob um regime capitalista. Não dá certo, é incompatível com a racionalidade econômica, atua contra a eficiência de resultados e pode ser amargo para a população usuária de serviços públicos. Rigidez e engessamento de regras não combinam com liberdade, criatividade e eficiência em gestão, com aquele "espírito animal" dos empresários que a presidente Dilma e seu ministro da Fazenda, Guido Mantega, vivem elogiando e contrapondo à paralisia do Estado em tocar negócios e investimentos.
Entre idas, vindas, dúvidas e inseguranças, o governo Dilma Rousseff levou um ano para apresentar seu primeiro leilão de rodovias. Escolheu para a estreia o que chamou de filé: as duas mais atraentes rodovias para interessados em faturar com pedágios: a BR-050, que passa por Minas Gerais e Goiás; e a BR-262, ligando Espírito Santo a Minas Gerais.
Segundo o governo, as regras do leilão implicavam compatibilizar o lucro do investidor privado, a tarifa baixa de pedágio e os prazos para melhorar o serviço e duplicar as estradas. Num primeiro momento, ele fixou a Taxa Interna de Retorno (TIR) - o lucro do investidor - em patamares que os interessados consideraram baixos. Temendo o fracasso, cedeu às pressões e elevou a TIR.
Se não interferisse e deixasse que os concorrentes disputassem a menor taxa de lucro no leilão, o governo poderia gerar um resultado até melhor para a tarifa de pedágio. Mas Dilma preferiu ceder à pressão dos empresários e elevar a TIR à alternativa de abrir mão de olimpicamente definir e ditar as regras. Resultado: o deságio de 42% para o pedágio oferecido pelo consórcio vencedor da BR-050 sugere ter sido até desnecessário elevar a TIR em 30% (de 5,5% para 7,2%).
A regra socialista da sentença "todo o poder emana do Estado", aplicada em ambiente econômico capitalista-privado, levou a muita confusão na definição do edital de licitação. Com o agravamento da crise de confiança dos investidores, aumentou no governo o temor de fracasso no leilão e a presidente Dilma e sua equipe passaram a buscar os meios possíveis de evitá-lo. E aí aconteceu o contraditório: puseram o Estado financeiro a serviço dos capitalistas privados que aceitassem participar do leilão - o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a financiar 70% do investimento com juros subsidiados; o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) a assumir as obras de duplicação das estradas; o governo federal a bancar riscos de interrupção da cobrança de pedágios decorrentes de protestos populares; e por aí vai. Ou seja, é um capitalismo amparado pelas muletas do Estado, um socialismo que não abre mão de dar a palavra final em tabelar o lucro privado, mas se atrapalha, não consegue e acaba se curvando a interesses capitalistas. Confuso, hein?
Mesmo com todos esses favores, a percepção de risco não foi eliminada nem a confiança recuperada. O leilão da BR-262 foi um fiasco: não houve apresentação de propostas e os investidores culparam justamente o risco Dnit - a incompetência do governo federal em começar a terminar obras em prazos previstos (a Ferrovia Transnordestina e a transposição das águas do Rio São Francisco são exemplos disso).
Como a regra do leilão definia que o pedágio só passaria a ser cobrado com a conclusão de pelo menos 10% da duplicação da estrada, o risco Dnit prevaleceu e o leilão fracassou. Além disso, as manifestações populares de junho engrossaram a percepção do investidor de que o governo vai ceder e apoiar protestos populares contra o pedágio - como ameaçaram deputados capixabas -, mesmo considerando a cobrança justa.
Desperdício. Conselheiro econômico dos governos petistas, o ex-ministro Delfim Netto tem criticado as privatizações de Dilma Rousseff. Diz ele que o governo erra ao tentar fixar a taxa de retorno e ao oferecer créditos do BNDES com juros subsidiados. "O projeto tem de ter um retorno dele, interno e não externo, que fique de pé por conta própria, não porque você está pondo subsídio." E argumenta ser impossível imaginar que o subsídio embutido na Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) vá durar por 35 anos (prazo da concessão).
Distribuindo facilidades financeiras aqui e ali, o governo segue colecionando fracassos e sucessos, como no leilão das duas rodovias. E o artificialismo momentâneo acaba prevalecendo sobre a racionalidade de projetos que precisam de uma estrutura sólida para durar 35 anos, sem precisar de muletas do Estado.
A maior derrotada nessa extravagante situação, no entanto, é a população que usa o serviço licitado. Primeiro, porque o modelo dos leilões só consegue atrair empresas de segunda linha, com pouca experiência em gestão e que não garantem um serviço de qualidade, tampouco uma tarifa estável e justa. Como aconteceu com os três aeroportos privatizados e as rodovias do Rio Grande do Sul, por exemplo, onde os consórcios vencedores fixaram tarifas de pedágio baixas no início, depois faltou dinheiro, não cumpriram metas de melhoria e duplicação das estradas e passaram a pressionar pelo aumento do pedágio para financiar os investimentos.
Mas não é só isso. Também nesse caso se aplicam o desperdício e a eterna, injusta e irracional distribuição do dinheiro público - do BNDES, do Tesouro Nacional e da provável indenização de riscos. Exemplo mais expressivo disso é o que vem acontecendo com as usinas eólicas do Nordeste: porque a estatal Chesf não conclui as linhas de transmissão para distribuir a energia que geram, essas usinas estão paradas e, há mais de um ano, o governo gasta milhões de reais para indenizar seus proprietários pelo nada.
E que tal equipar hospitais públicos, caro leitor?
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