FOLHA DE SP - 26/09
Ninguém tem coragem de nada, nem sequer de quebrar a rotina, mas todos procuram a aparência da rebeldia
Democratas e republicanos disputam a Prefeitura de Nova York. Um tema da campanha é a lei que autoriza os policiais a "parar e revistar" os que eles acharem "suspeitos".
Carregar armas e drogas em Nova York se tornou difícil, mas acontece que a maioria dos indivíduos parados e revistados são jovens negros e hispânicos, moradores de bairros pobres e com a aparência de malandro --touca preta na cabeça, calças "baggy" quatro dedos abaixo do elástico das cuecas, etc. Em uma blitz brasileira, os critérios seriam diferentes, mas os selecionados seriam parecidos.
A polícia de Nova York, acusada de basear suas "suspeitas" em um perfil racial e social, responde que seria ineficiente ignorar as estatísticas e revistar senhores de terno Paul Stuart.
No ano passado, na Flórida, Trayvon Martin, negro, 17 anos, foi morto com um tiro por George Zimmerman, 29, que fazia parte da ronda noturna de segurança do bairro. Segundo Zimmerman, Trayvon, interpelado como suspeito, reagiu; Zimmerman se sentiu ameaçado e atirou. No fim de agosto de 2013, Zimmerman foi inocentado da acusação de homicídio. O veredito indignou a comunidade afro-americana.
Em 13 de setembro, Bill O'Reilly, entrevistador do canal Fox, ao conversar com Cornel West (negro, professor e militante dos direitos da minoria afro-americana), disse que Trayvon Martin não morreu por causa da cor da sua pele: "Se Trayvon Martin estivesse usando um paletó e uma gravata como você esta noite, sr. West, eu não acredito que George Zimmerman teria achado ele problemático. Mas Trayvon estava usando um moletom com capuz, e ele tinha uma certa aparência, e essa aparência é a dos membros de gangues. E por isso ele chamou a atenção."
Quer dizer que poderíamos (deveríamos?) ser parados, revistados e, por que não, mortos a tiros se usássemos moletom com capuz? É uma estupidez: obviamente, os gostos vestimentários de Trayvon não justificam a reação de Zimmerman. Mas uma pergunta fica: Trayvon não era membro de gangue alguma, por que, então, ele estava tentando se parecer com um "gangsta"?
Nenhuma crítica: todos devem ter a liberdade de ir e vir vestidos como quiserem. Mas por que tantos jovens de classe média (baixa e alta) acham mais interessante se parecer com malandros, traficantes e outros delinquentes do que, por exemplo, com os estudantes que eles são? Nos EUA, aliás, a estética do "gangsta" é a estética quase universal do estudante de escola pública.
Alguém dirá que, para os menos favorecidos, a paródia da delinquência é um jeito de impor respeito (inspirando medo, por exemplo). Mas o fenômeno é interclassista, há tempos.
Quando meu filho começou o colégio em Scarsdale, um subúrbio de Nova York rico e por isso com boas escolas públicas, ele se preparou para o frio comprando um anoraque preto com um desenho branco que evocava a marca de uma gangue. Em Scarsdale, isso o identificava imediatamente como um cara problemático; era o que ele queria: poucos meses depois, ele adotou o sotaque de um outro subúrbio, próximo do nosso e famoso por suas gangues, e seu apelido na escola passou a ser "Bronx".
Meu filho e Trayvon, como milhões de outros adolescentes mundo afora, não inventaram nada: eles apenas enxergaram o extraordinário glamour do crime e da marginalidade em nossa cultura, ou seja, descobriram que nós, adultos (consciente ou inconscientemente), idealizamos a criminalidade.
Concluíram que seria cool eles adotarem a aparência, a música, os gestos, a caminhada dos membros de uma gangue. Imaginaram que isso pudesse lhes valer nosso respeito, se não nossa admiração.
Os jovens têm razão. Os adultos modernos carregam consigo um resto de adolescência mal resolvida, como se, para eles chegarem a ser adultos mesmo, ainda lhes faltasse um gesto de rebeldia que se esqueceram de fazer na juventude.
Essa adolescência, desperdiçada por falta de coragem, volta como farsa na vida do adulto: ninguém tem coragem de nada, sequer de quebrar a rotina, mas todos procuram a aparência da rebeldia. Não fiz nada do que eu queria ou esperava, mas amanhã vou tatuar uma estrelinha na bunda.
Em suma, a rebeldia é uma aparência nos adolescentes porque também ficou como aparência em nós. E mais isso: os adolescentes camuflados de "gangstas" nos assustam como nos assustam os nossos próprios sonhos frustrados e já vencidos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário