FOLHA DE SP - 10/08
RIO DE JANEIRO - No último grande filme do diretor inglês Michael Powell, "A Tortura do Medo", de 1960, Carl Boehm interpreta um psicopata que não se contenta em matar mulheres. Filma-as enquanto as mata (com a perna afiada do tripé de sua câmera à guisa de espada), para ver a expressão de terror em seus rostos, e acopla um espelho à arma para que elas também contemplem o próprio medo. É um "cheek to cheek" macabro.
Aprendi outro dia com meu dentista --vamos chamá-lo de Américo, embora este seja o seu nome verdadeiro-- que não é preciso ser tão radical para conhecer o medo na sua plenitude. Pode acontecer até na paz de um consultório dentário --e mais ainda se o profissional for, como ele, uma autoridade na mais temida especialidade do ramo: o tratamento de canal.
Em mais de 30 anos de profissão, Américo calcula ter tratado, em média, cinco canais por dia. A cada ano de 300 dias, isso significou 1.500 canais. Donde, em 30 anos de trabalho, foram 45 mil canais.
Ou 45 mil rostos a um palmo do seu, petrificados na cadeira à ideia de que, durante horas, terão suas cavidades perfuradas por brocas, canais penetrados por agulhas e as respectivas polpas sugadas e limadas por verrumas. Tudo depois lavado com peróxido de hidrogênio ou hipoclorito de sódio, e preenchido com bastões de guta-percha aparados por ferrinhos incandescentes.
É difícil acreditar que não dói tanto quanto parece e, se doer, a anestesia resolve. A simples palavra canal faz com que, impotentes, de boca aberta e com o babador de papel ao pescoço, as pessoas assumam um ar de pavor e súplica que constrange tantos dentistas. Américo nunca se deixou constranger. Mas, 30 anos e 45 mil canais depois, decidiu mudar de especialidade. Cuida agora apenas da parte estética --e, com isso, só vê rostos felizes à distância de um palmo.
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