O Estado de S.Paulo - 24/08
A vida é uma só, não é assim que se diz?
O cara era completamente obcecado por ela, desde o primeiro dia em que a viu. Mas não pôde avançar. Tem limites. Sempre teve. Desde quando Moisés mandou o recado: "Não cobiçarás a mulher do próximo". Se entre dez mandamentos, apenas dez, cobiçar a mulher alheia estava entre eles, com a mesma relevância de "não matarás" e "não furtarás", porque é um princípio que deve ser seguido à risca. Talvez, um dos pilares da civilização. Deus não queria baderna. Foi sucinto, porque Deus não tinha tempo a perder. E soube como ninguém usar aquilo que criou em primeiro, o verbo.
Disse ele: "Não desejarás a casa do próximo, nem seu campo, seu servo, nem a sua serva, seu boi, jumento, nem coisa alguma do próximo". Coisa alguma, Ele disse. O jumento do próximo, poucos cobiçam. O boi e o servo, também. Só que um cara cobiçou, cobiça e cobiçará a mulher do melhor amigo. Por sabe-se lá quanto tempo.
Ambos estavam juntos quando a viram pela primeira vez. Numa festa. Mas foi o melhor amigo quem tomou a iniciativa. Viram-na dançando, sozinha, assim que entraram. Era a perfeição, vestia a perfeição, se movimentava com perfeição e atraía olhares também das próximas.
Os dois a notaram de imediato. Mas, como dois predadores, um não falou para o outro da joia rara que dançava sozinha no meio da pista. Um foi pegar bebida, o outro cumprimentou amigos. Ambos de soslaio, observavam a movimentação da presa. Só que o amigo foi segundos mais rápido. Ao final, já estava com ela num canto. Depois, já estavam se pegando. Logo, passaram a ser vistos juntos em outras festas. Dançaram. Beberam. Namoraram. Logo, marcaram o casamento. O outro? Inveja. Poderia ter sido ele. Mas foi o mais rápido, ambicioso e desprendido que ficou com o grande prêmio.
Sabe que ela gostava do amigo do namorado. Gostava do amigo atrapalhado com as mulheres. Gostava do inconsequente solteirão, neurótico, sempre apaixonado pelas mulheres erradas, envolvido em tramas nitidamente falidas. E ainda reclamava que o namorado era muito correto. Faltava nele a imprevisibilidade das tardes enroladas.
Os três saíam juntos. Parecia que era com ele que ela tinha mais afinidade. Com o não namorado.
No casamento, quando ele deu aquele abraço na então nova esposa do melhor amigo, ela disse algo de que ele nunca se esqueceu, que surpreendeu e deu aquele arrepio na alma, que poucas vezes um homem sente, arrepio que amolece os joelhos, as convicções, e o fez repensar em todos os segundos vividos nos últimos meses.
"Se não fosse ele, eu me casava com você", ela disse, beijando com a maciez de uma noiva encantada, pendurada no pescoço dele, bêbada, enroscando seu véu na gravata dele, seu colar no relógio dele. Ele sentiu o calor da carne dela, o bafo doce e quente que entorpeceu como uma anestesia que não pega e alucina.
O fotógrafo contratado fotografou-os nesse instante. E ela, dias depois, mandou para ele exatamente "a" foto. Em que ela parece debruçada para não cair, enroscada, com os olhos de uma mulher absolutamente apaixonada, como se entregue aos braços do grande amor. Na verdade, aos do melhor amigo do novo marido, depois de dizer que poderia ter sido ele, não o outro, se, meses antes, na festa inconsequente, tivesse agido com mais determinação, não tivesse gasto minutos de indecisão. Deu a entender até que preferia ele, golpe violento que algumas mulheres, na volúvel mania de dizer o que pensam, deferem sobre a lógica masculina quase binária. Enviou a foto como uma prova da existência do livre-arbítrio. E de que o amor não é um fato consumado, algo escrito ou predeterminado, e que Deus joga dados.
O que não pode? Moisés sumarizou demais. Com a vizinha? Não pode. Com a filha do amigo, a mulher do amigo, a amiga da mulher? Não pode. Com a cunhadinha? Claro que não. Com a chefe, a subalterna, a prima, a enteada, a amiga de infância... Não pode? Limites impostos conseguem se sobressair sobre sentimentos descontrolados? A humanidade é a síntese da luta entre razão e emoção. E dá certo porque quase sempre a primeira ganha por nocaute.
Anos depois, ele sentiu um movimento diferente. "Meu amor", "meu querido", "lindo", passaram a fazer parte das mensagens trocadas. Cifradas. "Muitos beijos", "mil beijos", "beijão", também foram incluídos. Códigos. Vamos sair um dia, vamos tomar um café, vamos passear, papear, ao teatro, ao cinema, ela sugeria, preciso papear, desabafar, preciso falar, indicava, preciso de colo, atenção, suprimir uma estranha carência que nasceu como erva daninha. "Penso em você todos os dias", ela enfim escreveu numa mensagem bombástica.
Ele ligou, ela não atendeu. Devia estar com ele ao lado. Ela ligou, ele não atendeu. Estava ocupado. O desencontro durou semanas. Até um dia, sim, conseguiram se falar. A voz dela, aflita. Pressa. Urgência. Está difícil, ela disse do nada. Tenho só 30 anos. Às vezes, parecemos dois amigos. Dois irmãos. Está difícil, ela repetia. Ele vai viajar. Vamos sair. Precisamos sair. Preciso sair. Estou carente demais.
E ele só pensa numa coisa. Tem limites? Ele a deseja demais. Quer levá-la para uma suíte presidencial. Quer despi-la. Tê-la. Quer vê-la nua andando pelo quarto. Quer vê-la nua sobre ele. Quer beijar todos os pedaços, os cantos, sentir todos os cheiros, a textura de cada parte. Quer ouvi-la suspirar, rir, gozar. Quer ver os olhos dela embaçar, revirar. Quer vê-la tímida, abusada, entregue, retraída, culpada, muito culpada, totalmente culpada e viva! Quer sofrer com ela. Quer ter dúvidas. Quer ser sufocado por descrenças, indecisões e tormentos. Quer se sentir vivo à beira de um abismo. Numa corda bamba. Com uma corda no pescoço. Acordado.
Se comecei esse texto com uma frase feita, termino com outra. Querer não é poder. Não é?
Talvez elas sirvam para reprimir ambições impossíveis. Falo das frases feitas. Deus não nasceu ontem. É esperto. Imagina a bagunça, se a cobiça virasse fato.
Se bem que acabei de me lembrar de outra frase feita. Toda a regra tem... Você sabe.
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