FOLHA DE SP - 19/08
É preciso muita viseira ideológica para qualificar a política externa do governo Fernando Henrique Cardoso como "submissa e passiva"
Em sua resposta ao artigo "Palpite infeliz", que publiquei neste espaço há duas semanas, Matias Spektor alertou-me para a disponibilidade de vídeos e textos referentes à conferência 2003-2013: Uma Nova Política Externa, organizada pela Prefeitura de São Bernardo e pela Universidade Federal do ABC, entre outras entidades. Fui ao site do evento para conferir o material.
A visita confirmou a minha expectativa de que o tom e o espírito da conferência haviam sido fundamentalmente de celebração da assim chamada política externa "altiva e ativa", em que pesem a boa qualidade de algumas das contribuições e o objetivo, meritório, de pensar o futuro e propor novas formas de participação da sociedade na formulação da política externa.
Aberto pelo prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho, e encerrado pelo ex-presidente Lula, o evento contou com intervenções de ministros, dirigentes partidários e líderes sindicais ligados ao PT. Os especialistas que participaram são todos simpáticos à política externa dos últimos dez anos.
Respeito a biografia e o trabalho de todos os ali presentes. E não teria objeção alguma ao fato de se reunirem para promover e aguçar uma certa visão sobre a política externa brasileira, não fosse a utilização de recursos públicos para esse fim. Isso não é novo nem é bom.
Do que li, vi e ouvi, a sinfonia executada em São Bernardo reiterou, com poucas exceções e sem nenhuma nota realmente dissonante, o slogan autocongratulatório da política externa "altiva e ativa".
O slogan supõe que a política externa que a antecedeu foi "submissa e passiva". É preciso muita viseira ideológica para assim qualificar a política externa do governo Fernando Henrique Cardoso.
Esta buscou inserir o Brasil no sistema internacional e na economia global preservando o mais possível, nas circunstâncias internas e externas de então, o espaço de escolha autônoma do país. Vínhamos de um processo crescente de isolamento e desprestígio internacional nas duas décadas anteriores. Com o Plano Real, criaram-se as condições necessárias, embora insuficientes, para mudar esse quadro.
A assinatura do acordo da dívida externa, em 1994, ainda no governo Itamar Franco, pôs fim a um capítulo aberto em 1982 e agravado em 1987, com a moratória.
Com a aprovação da Lei de Propriedade Intelectual, em 1996, e a assinatura do Tratado de Não Proliferação Nuclear, em 1998, o Brasil aderiu a normas internacionais regulando essas duas cruciais matérias à paz e ao desenvolvimento.
No primeiro caso, ao fazê-lo, não abdicou da prerrogativa de lutar pela quebra de patentes de medicamentos, quando em risco a saúde pública, como ficou demonstrado com êxito na abertura da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio, em 2001.
No segundo, não abriu mão de seu direito a desenvolver um programa nuclear para fins pacíficos. Ao contrário, protegeu-o de suspeitas e pressões externas indevidas.
Ao engajar-se no processo negociador da Alca, o Brasil impediu, já em 1997, que o eventual acordo pudesse ser implementado em fatias, como queriam os EUA, e estabeleceu com clareza, na Cúpula de Quebec, em 2001, quando nos aproximávamos da fase mais substantiva da negociação, as pré-condições para a adesão a um eventual acordo.
Gelson Fonseca, diplomata e um dos nossos melhores pensadores na área de relações internacionais, cunhou as expressões "autonomia pela inserção" e "autonomia pela diversificação" para caracterizar, nas suas diferenças e continuidades, as políticas externas dos governos FHC e Lula, respectivamente.
Uma eventual "nova política externa" poderá resultar do confronto intelectualmente honesto entre essas duas estratégias, devidamente considerados os novos ventos do mundo. Isso, infelizmente, não aconteceu em São Bernardo.
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