sábado, junho 01, 2013

Se até o Papa peca... - CACÁ DIEGUES

O GLOBO - 01/06

Tudo que nos der prazer na vida está proibido, como se nossa natureza tivesse sido criada para o pecado, e assim devermos evitá-la e sufocá-la


Vivemos num mundo em que a obsessão pela perfeição técnica conflitua com o cada vez maior descaso pela perfeição moral. Não estou me referindo à moral religiosa dogmática, intolerante e muitas vezes criminosa. Estou falando da necessidade de um mínimo de acordos humanos respeitados universalmente para que o progresso não destrua a civilização.

No último e fascinante best-seller de Dan Brown, “Inferno”, essa crise de nosso tempo é vista como resultado do crescimento demográfico e da competição entre os homens pelo que sobra no planeta. Uma versão catastrofista e sem saída para a espécie. Ao longo da história humana, já vivemos graves crises de escassez e sobrevivemos. Hoje, ao contrário, vivemos uma cultura de abundância (na informação, na criação técnica, nos meios de sobrevivência, na duração da vida) que certamente nos fará encontrar a saída para a superpopulação.

Como nos diz o professor Denilson Lopes, em seu livro sobre a delicadeza, é preciso “caminhar diante do peso das coisas, com a leveza na alma”. Ou, dito de outro modo, levar tudo a sério sem perder nunca a alegria. Algumas fantasias podem nos levar à desgraça. Mas, se cultivamos uma fantasia que nos ajuda a viver melhor, por que nos descartarmos dela em nome de uma racionalidade que não nos faz feliz? Temos portanto o direito de sonhar com o gênio solitário que encontrará soluções para qualquer desses nossos problemas físicos e materiais.

A crise moral, no entanto, não pode ser resolvida por um homem só. Ela necessita da pregação e do entendimento entre todos, um contrato acordado, mesmo que virtualmente, entre 7 bilhões de pessoas. Moral é tudo aquilo que permita a esses 7 bilhões conviver um com o outro, sem provocar prejuízo um ao outro. Ela começa pela aceitação da diferença entre os semelhantes e pelo respeito aos direitos do próximo. Como ensinava Rosa de Luxemburgo, “a liberdade é sempre e fundamentalmente a liberdade de quem discorda de nós”. A moral começa portanto pela consagração da democracia.

Quando o Papa Francisco diz ter muitos pecados, mas confia no perdão divino, como declarou esta semana, ele está produzindo uma revolução na hierarquia e desafiando o dogma de infalibilidade de sua religião, em nome de um novo humanismo não triunfalista, em que os homens reconhecem sua natureza imperfeita, e é dela que vão construir sua grandeza. Para quem não acredita em Deus, o perdão divino é o consenso moral dos homens a seu favor.

Na mesma semana em que fomos iluminados por esse exemplo de humanismo, lemos nos jornais que outro homem poderoso, o ex-ditador da Argentina, general Jorge Videla, responsável pela prisão, tortura e morte de tantos “desaparecidos”, morreu no cárcere, sentado no vaso sanitário de sua cela. Ou seja, morreu fazendo cocô, necessidade natural de qualquer outro ser humano, de qualquer outro bicho desimportante do planeta.

A declaração do doce Papa Chico nos atualiza com o comportamento dos dois papas João XXIII. O primeiro João XXIII, Baldassare Cossa, eleito em 1415, durante o longo cisma da Igreja, foi logo deposto pela Cúria, com o apoio dos nobres católicos de toda a Europa, por afirmar a igualdade entre os homens e viver essa experiência durante seu curto papado. Depois de sua deposição, a Igreja riscou seu nome da lista dos papas, só corajosamente retomado, em 1958, pelo cardeal Angelo Roncalli, o grande e definitivo João XXIII, reformador político e social da Igreja, com repercussão em todos os grupos religiosos e em todo o mundo.

Para os crentes dogmáticos, o nosso é um mundo provisório, onde devemos sofrer para termos direito ao paraíso que nos espera depois da morte. Tudo que nos der prazer na vida está proibido, como se nossa natureza tivesse sido criada para o pecado, e assim devermos evitá-la e sufocá-la. O “pecado” que todos nós, mesmo um papa, estamos sempre a cometer justamente por ele fazer parte de nossa natureza.

Em vez da punição do passado, o perdão de nossos pecados deve servir à construção do futuro, como uma celebração moral da sociedade em que vivemos. Na organização dessa sociedade, temos que pensar no bem-estar comum como condição para nosso próprio bem-estar. Uma concepção includente da riqueza produzida por todos, difícil de ser aclamada, mas indispensável à nossa paz.

De nosso acordo moral universal deve fazer parte nosso direito à nossa natureza, sem medo dela e sem usá-la para oprimir o outro. A base essencial dessa moral é a tolerância e a consciência de nossos direitos iguais. É isso que Francisco, nome de um santo suave e megalômano, o que mais amava e o que mais sofria, quis nos dizer ao se afirmar um pecador como qualquer um de nós.

O perigo é, daqui a pouco, toparmos com alguns desses políticos marombeiros a argumentar que, se até o Papa peca, por que se sentirem culpados do que fazem?

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