O GLOBO - 05/02
É preciso barrar no nascedouro evidentes afrontas ao espírito democrático das eleições
A Constituição de 88 passou o Brasil a limpo, dotando o país de mecanismos legais que, neste quase quarto de século, asseguraram a transição sem grandes traumas de um regime de exceção para a democracia plena. E não só: a Carta que hoje insere a nação entre aquelas que garantem a seus cidadãos a normalidade de um estado democrático, também tem dado o anteparo legal para corrigir injustiças sociais e superar crônicas demandas institucionais.
Seu corpo consolida uma ordem política em consonância com as mais avançadas democracias do mundo. Mas, infelizmente, esse arcabouço, por si só, não alcança desafios advindos de décadas e décadas de desvios institucionais, culturais, comportamentais e políticos enraizados na sociedade. Ainda há muito o que fazer para aprimorar o desenvolvimento social e moral do país, principalmente no que tange ao comportamento do homem público.
É por esse viés que se deve receber a contribuição de dois dispositivos recentemente incorporados à legislação eleitoral — a Lei Complementar 135/10, conhecida como Lei da Ficha Limpa, e a Resolução 23.376, do Tribunal Superior Eleitoral, que visa a impedir a participação em pleitos eleitorais de candidatos cujas contas de campanha tenham sido rejeitadas. São instrumentos — que alcançam especificidades que não caberia contemplar na Carta — cruciais para a Justiça eleitoral obstar a unção, pelo juízo maior da vontade popular, de pessoas que notoriamente buscam a inviolabilidade de mandatos eletivos para exercê-los em atendimento a interesses pessoais, portanto contra o espírito da democracia representativa.
A Lei da Ficha Limpa é mais abrangente — e inquestionável, por decorrer da vontade popular graças a inédita mobilização da sociedade que resultou na aprovação desse diploma pelo Congresso. A crônica dos processos eleitorais em todo o país sempre registrou indesejáveis episódios de vícios e distorções, não por defeito do princípio do sufrágio universal, cláusula pétrea da democracia, mas por maus usos de mandatos e de abusos eleitorais que maculam a desejada transparência com a qual os candidatos devem se apresentar ao eleitorado. Tais episódios, sempre repudiados, mas operados em desvãos da legislação, não terão passado despercebidos pelos tribunais. Mas, obrigados a dar provimento a candidaturas que afrontavam o respeito ao eleitorado, juízes pouco podiam fazer.
É em resguardo dessa nova realidade, em que se pode barrar no nascedouro evidentes afrontas ao espírito democrático das eleições, que se deve saudar esse filtro agora incorporado ao conjunto de normas que regem os processos eleitorais. Já a resolução que atinge os chamados contas-sujas ainda é objeto de discussões. E é correto que o seja, para depurá-la de eventuais excessos (se os tiver) e introduzi-la em definitivo no conjunto de regras eleitorais, como mais uma contribuição aos nossos magistrados para que julguem, com o rigor da lei, a prestação de contas de candidatos que, por princípio do sistema de representação, têm o dever de zelar pela moralidade pública.
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