REVISTA ÉPOCA
A gente nunca sabe se as declarações das celebridades são sinceras ou se têm apenas o objetivo de atrair atenção e causar reboliço na imprensa. Feita essa ressalva gigante, fiquei impressionado ao ler na internet a entrevista da modelo Nicole Bahls, na semana passada. Com franqueza incomum, ela explicou a um repórter que seus namorados a trocam por outras mulheres porque – em suas próprias palavras – ela não gosta de “dar o bumbum”. “Tem um monte de mulher por aí fazendo isso”, ela disse. “Como eu não gosto de dor, perco o namorado.”
Bonita e famosa como é, suspeito que Nicole não tenha dificuldade em substituir os malvados sodomitas que de maneira tão insensível a deixam na fila. Acho, também, que embora seja inevitável rir desse assunto, ele é sério. Constitui um problema de relacionamento que incomoda milhões de mulheres brasileiras. Nunca vi uma estatística, mas pressinto que boa parte das amantes, namoradas e esposas deste país precisam driblar, diariamente, a mesmíssima insistência vivenciada por Nicole: homens lascivos querendo fazer sexo anal. Nelas. Diante da pressão, as moças recusam ou ganham tempo. De vez em quando, um fetichista impaciente vai embora. Acho que essa forma de pecado dolorosa deve ser a segunda principal questão na vida dos nossos casais. A primeira, claro, é quem lava a droga da louça.
No passado, mulheres como Nicole poderiam proteger seu patrimônio invocando a lei. Por inspiração do império britânico, onde reinava a chatíssima rainha Vitória, a sodomia foi proibida em quase toda parte no século XIX, junto com outras formas de perversão como bestialismo e... o sexo oral. Conhecidas como Leis da Sodomia, essas proibições tinham a intenção principal de impedir homens gays de fazerem sexo entre si, mas se aplicavam também a casais heterossexuais. No mundo anglo-saxão, que influenciava o comportamento oficial da elite no resto do planeta (sempre houve o comportamento paralelo), qualquer forma de sexo que não fosse reprodutivo era considerada antinatural. Os últimos 15 estados americanos a abolir as Leis da Sodomia o fizeram em 2003. Isso é ontem em termos de história.
Como agora não existem mais proibições legais, tudo o que acontece no mundo do sexo pode ser livremente negociado no interior dos casais. E aí é que a coisa aperta. A cultura masculina brasileira é profundamente fetichista. Não basta olhar a bunda da mulher, é preciso tomar posse dela. Quanto mais linda a paisagem, maior a exigência de corrompê-la. Essa lógica de posseiro é tão centrada no desejo masculino que ignora a anatomia e a cabeça das mulheres. Algumas simplesmente não têm condição física de acomodar o prazer masculino. O esfíncter não é igual em todas elas, assim como os homens brasileiros, beneficiados pela miscigenação, são enormemente desiguais entre si. Tamanhos, neste caso, são os documentos essenciais da negociação.
Há também a questão psicológica. Muitas mulheres não sentem prazer anal. Outras não suportam nem a ideia de sexo nesse compartimento. Têm nojo, repulsa, sei lá. Sendo homens, tendo a resistência que temos a ser tocados no local em que a mamãe passou talquinho, não deveríamos estranhar essa objeção. Mas estranhamos. Crescemos ouvindo na sala de casa, daquele tio simpático e depravado, que não há nada mais gostoso que submeter uma mulher à retidão da nossa fantasia – e que ela, embora chore como se estivesse sendo machucada, adora. Movidos pela nossa luxúria, nos recusamos a acreditar que as mulheres realmente não gostam ou não querem “dar o bumbum”. Tendemos a achar, lá no fundo, que a resistência delas é uma espécie de trava emocional, uma neurose, um defeito de software que um dia, com muita persistência, será consertado na conversa. Ou na marra.
É preciso admitir que a fabulosa lenda do sexo anal tem dois pés na realidade. Um são as mulheres que realmente gostam dessa modalidade de prazer. Elas existem e nem são tão poucas. Movem-se com discrição entre os homens e entre as próprias mulheres porque a nossa moral sexual condena tudo aquilo que secretamente exalta. As moças sodomitas têm vergonha e sabem que podem ser discriminadas por moralistas e por feministas. Quando um homem esbarra numa delas, às vezes de forma totalmente inesperada, descobre logo de cara que aquele tio pervertido era um idiota – quando elas gostam, a dor não é parte importante do processo. O prazer se faz com jeito e delicadeza masculinas.
O outro pé da lenda é dado pelas mulheres que cedem, embora não gostem. Elas também são muitas. O marido insiste há tanto tempo, a relação anda meio morna, então vai lá – qualquer coisa para ver os olhos do sujeito brilhando de novo. Com o tempo elas se acostumam. Ou então há o medo de perder, medo de que o cara – como diz Nicole Bahls – vá buscar por aí o que não tem em casa. Neste caso, elas tomam um pilequinho, ou acendem um cigarrinho, e meio anestesiadas torcem para que o sujeito termine logo.
As feministas dirão que isso é um horror, mas a verdade é que as pessoas fazem muita coisa desprazerosa pelo outro. Elas suportam nove meses de gravidez, por exemplo. Ou cozinham e fazem faxina quando gostariam de se atirar no sofá. Os homens trabalham em empregos horrendos por anos a fio, 10, 12, 13 horas por dia, para manter a casa e a família. Quando alguém cai doente, o outro cuida, embora seja chato. Todas essas coisas são feitas, ao menos em parte, por amor. Muito na nossa vida envolve sacrifício. Eu não quero sugerir com isso que as mulheres tenham de ceder ao desejo dos seus homens e virar de costas apenas porque gostam dele. Mas acredito que se elas decidirem fazer isso terão suas razões. Assim como estarão inteiramente corretas se disserem não. É o corpo delas. É o bumbum delas. Talvez não exista nada mais íntimo e pessoal.
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