Não é defender os mensaleiros, mas não deveríamos também censurar os governantes que compram a "governabilidade" distribuindo cargos e emendas?
A afirmativa de que os fins justificam os meios sempre foi vista como antiética. Todavia, em nosso cotidiano, vemos exemplos claros dessa prática, que não censuramos.
Quando Fernando Henrique Cardoso foi pela primeira vez eleito presidente, José Serra, então seu fiel escudeiro, perguntado por um repórter se estaria preocupado com a "governabilidade", respondeu que não, pois dispunha-se de 20 mil cargos.
Entenda-se que estes cargos seriam distribuídos para obter governabilidade, o que significa apoio no Congresso, em votações que fossem de interesse do Executivo. Ou seja, governabilidade por distribuição de cargos não seria apenas um eufemismo para compra de votos?
Um desses cargos sem concurso corresponde a um salário entre R$ 5.000 e R$ 15.000 por mês, digamos uma média de R$ 130 mil por ano. Os 20 mil cargos durante um mandato de quatro anos somam R$ 10 bilhões. Frente a tal valor, o total do mensalão é uma ninharia.
Ora, o professor José Serra estaria dizendo que dispunha dessa imensa quantia de dinheiro público para comprar governabilidade -ou seja, apoio em votações de interesse do governo. Será que isso é diferente, em sua essência, da compra de votos como interpretada pela STF no caso do assim chamado "mensalão"?
Uma outra forma generalizada de "compra de governabilidade" é através das chamadas emendas parlamentares. Consideremos para ilustração o seguinte exemplo: ainda no primeiro mandato de Fernando Henrique, foi formada uma comissão mista do Congresso para aprovar o contrato que suportaria a implantação do "Sivam" (Sistema de Vigilância da Amazônia).
Fui escalado para representar a oposição ao projeto. O contrato com o Eximbank que forneceria e forneceu os recursos atribuía ao Brasil apenas a responsabilidade das obras civis, conferindo às indústrias dos Estados Unidos e da Europa a confecção de todos os equipamentos, embora já existisse uma indústria nascente brasileira no setor.
A intenção de sonegação de transferência de tecnologia para o Brasil ficava óbvia em um artigo do contrato que dizia que se qualquer equipamento não pudesse ser produzido nos Estados Unidos, ele poderia ser encomendado em qualquer outro país, exceto o Brasil.
Essa obscenidade teria sido suficiente para que qualquer parlamentar com um mínimo de patriotismo, para não dizer dignidade, repudiasse a proposta americana.
Pois bem, o projeto foi aprovado sem objeções. Na semana seguinte, a Folha publicou a relação de emendas parlamentares liberadas imediatamente após a votação e os respectivos nomes dos congressistas que tinham votado favoravelmente.
O único critério para as ditas liberações foi, inquestionavelmente, o voto favorável, ou seja, votos foram comprados com dinheiro público.
Esses e outros múltiplos dispositivos, igualmente inquinados, são generalizadamente adotados igualmente por impolutos e ímpios políticos no Brasil. Apenas não são tão explícitos como aquele do dito mensalão, pois sabem manter as aparências. À mulher de César basta parecer honesta.
Que a simplista exposição aqui apresentada não seja entendida como escusa aos atos dos assim chamados mensaleiros, mas antes como alerta para a sociedade a respeito das múltiplas e corruptas formas, já banalizadas, de compra de voto que frequentam o Congresso.
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