quinta-feira, setembro 13, 2012
Semelhantes na escuridão - CÉSAR FELÍCIO
Valor Econômico - 13/09
Um caudilho do século 19 foi o responsável por uma das principais marcas que cavaram um fosso entre a Argentina e o Brasil. Nascido muito longe de Buenos Aires, nas encostas da Cordilheira dos Andes, Domingos Faustino Sarmiento foi um estadista cruel, eugenista e oligárquico como mandava o espírito da época, mas imbuiu-se de uma missão que faz com que até hoje seja discutido: transformou a educação pública, laica, gratuita e universal como indutor do desenvolvimento.
Sarmiento ridicularizava a aristocracia agropecuária que controlava o país. "As vacas dirigem o país. A criação de gado, tal como se pratica hoje, produz governos que degolam quadrúpedes ou bípedes indistintamente", disse, segundo relatou o historiador Felipe Pigna. O antídoto estava no que chamava de missão civilizadora do Estado. Uma tarefa que se centrava em incorporar maciçamente no meio letrado " a maioria dotada com a liberdade de ser ignorante e miserável".
Na estratégia de Sarmiento, a prioridade quase exclusiva era a educação de base. "A educação acima da instrução primária é desprezível como forma de civilização. Todos os povos tiveram sempre doutores e sábios, sem ser civilizados por isso".
Brasil e Argentina, enfim, convergem na educação
Sarmiento já estava fora do governo quando em 1884, quatro anos antes da lei áurea no Brasil, o país instituiu a obrigatoriedade de se implantar escolas públicas em todas as cidades com mais de mil habitantes. À época, 70% das pessoas entre 5 e 14 anos do país estavam fora da rede escolar. Eram na época cerca de 2 milhões de habitantes. Menos de cinquenta anos depois, em 1931, esta porcentagem havia baixado para 25%, em uma Argentina com 12 milhões de habitantes. No Brasil, este patamar só foi atingido nos anos 70.
Foi esta a base que colaborou para argentinos ganharem dois prêmios Nobel na área científica e chegarem a estar entre os dez maiores consumidores de papel jornal do mundo, em um tempo já distante. A fotografia atual mostra que o panorama da educação na Argentina e no Brasil se superpõe, conforme deixou evidente o relatório da OCDE divulgado ontem.
Em 2009, de acordo com a instituição, o percentual da população que não chegou a terminar o ensino médio na Argentina era de 58%. No Brasil, de 59%. A educação na Argentina ainda é tratada como mais relevante pelo poder público: o país gasta o equivalente a 6% do PIB na educação. No Brasil, o percentual era 5, 7%.
Mas o Brasil foi o país que mais elevou os gastos públicos no sistema entre 2000 e 2009, entre os membros do G-20 e os integrantes da OCDE. A população entre 15 e 19 anos que está estudando é de 76% nesta faixa etária, no Brasil. Na Argentina, o percentual cai para 70%. No Brasil, a lei determina um ciclo letivo de 200 dias. Na Argentina, 170.
A pior notícia para as autoridades de educação da Argentina ainda deve estar por vir. A OCDE divulga até o final do ano o resultado de matemática do teste PISA, que mede trienalmente a qualidade do assunto em um conjunto de escolas e alunos de 60 países. Em 2009, pela primeira vez, os alunos brasileiros tiveram um desempenho melhor que os argentinos, na prova de leitura.
Não se trata de nenhuma proeza nacional. A educação brasileira está entre as piores avaliadas pelo PISA e o resultado obtido pelos alunos do Brasil é tão fraco que o governo da presidente Dilma Rousseff resolveu se associar ao de Cristina Kirchner em numa articulação para desacreditar a avaliação. No próximo mês, um seminário deve se realizar em Buenos Aires para que técnicos dos dois ministérios apontem as falhas no sistema.
O que é patente, e não é de hoje, é que os caminhos do Brasil e da Argentina na educação se encontraram porque a curva dos dois países é convergente. Um estudo feito pelo BID em 2008 constatou que a qualidade da educação no Brasil de forma contínua em avaliações internacionais entre 1950 e 2006 porque aumentou - e muito - a escolarização da população e o ensino deixou de ser um atributo de uma elite. Na Argentina, a única explicação possível para o declínio é a queda da qualidade na prestação do serviço.
A qualidade do ensino na Argentina pode ter começado a se perder em 1978, quando 6 mil escolas federais foram transferidas para os governos locais pelo general Jorge Videla, sem que tenha havido repasse de recursos. Ou a data inicial pode ser contada da reforma educacional de 1993, no governo de Carlos Menem, em que a descentralização foi levada a tal extremo que se perdeu quase toda regulação nacional. Outro marco zero pode ser a catástrofe econômica do governo De La Rúa, em 2001, que liquidou financeiramente todo o poder público.
"O fato é que a população que entrou na rede escolar no período de maior escassez de recursos públicos está sendo avaliada agora. A Argentina está colhendo o que plantou alguns anos antes", afirmou a educadora Annie Mulcahy, que coordenou um programa de escolas integrais no governo da província de Buenos Aires no ano passado.
Nos últimos anos, segundo Mulcahy relatou, o kirchnerismo tomou uma série de medidas não muito diferentes das adotadas no Brasil, como a criação de um fundo para a recuperação salarial de docentes, a padronização da formação do professorado e o estímulo à educação integral, entre outras medidas. Mas as escolas públicas argentinas chamaram a atenção nos últimos meses pelo aparelhamento político.
Há alguns meses, um grupo de deputados da oposição revelou que o movimento "La Campora", uma facção governista liderada pelo filho da presidente, estava promovendo oficinas com alunos de escolas públicas em que se promovia jogos de mesa em que se só avançava casas no tabuleiro se dessem respostas que promovessem o governo. O nome da brincadeira era "o herói coletivo".
Na Argentina, o culto a Evita Perón é o precedente célebre de manipulação política nas escolas. "Minha mamãe me ama. Eu vejo mamãe. Eva ama mamãe. Eva me ama" era a frase que ensinava a ler a todas as crianças argentinas na década de 50 em escolas públicas.
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