sexta-feira, agosto 17, 2012
Dos embargos auriculares - MARIA CRISTINA FERNANDES
Valor Econômico - 17/08
Este recurso não está em nenhum manual de direito e não consta dos currículos das universidades mas seu uso faz fama e fortuna de muitos advogados. À conversa ao pé do ouvido, obtida por acesso privilegiado a magistrados, cunhou-se a gíria do embargo auricular.
O recurso tem contribuído para a prosperidade de gerações de advogados na mesma velocidade com que levou 60% dos brasileiros a descrer dos seus juízes (Índice de Confiança na Justiça, FGV, 2012).
Um senador recentemente cassado fazia frequente uso deles junto a um ministro do Supremo Tribunal Federal. Um ex-candidato à Presidência da República e até mesmo um ex-presidente já foram flagrados em embargos auriculares junto ao mesmo ministro.
Julgar à luz dos autos numa nação que espera ser redimida
Tal foi a pressão que os ministros passaram a gravar as audiências concedidas aos advogados do mensalão.
Nos cinco dias a que a defesa teve direito no processo assistiu-se, finalmente, ao contraditório que, ao longo dos últimos sete anos, foi sonegado à opinião pública.
Desiguais na consistência dos argumentos e no anedotário, a banca de advogados foi capaz de abalar convicções sedimentadas como a de que parlamentares que pagam dízimo para integrar um partido seriam remunerados para segui-lo ou a de que o escoadouro de recursos públicos do mensalão tucano em Minas Gerais não guarda relação com aquele que os petistas colocariam em curso anos depois.
Depois de uma sucessão de advogados terem se empenhado em apelar para que os juízes se atenham aos autos, um dos derradeiros da banca foi à tribuna protestar contra o que acredita ser o cerceamento de sua atividade. Reclamou de não poder lanchar ao lado dos ministros do Supremo no intervalo das sessões, a exemplo do que o faz o procurador-geral da República.
O acesso do Ministério Público à magistratura é uma velha queixa da advocacia em nome do direito de defesa.
O reclamo passaria como uma nota dissonante de pé de página não tivesse sido verbalizada pelo defensor de presidentes da República, governadores, ministros, empreiteiros, banqueiros e advogado-sócio do restaurante que tem a maior concentração de embargos auriculares da capital federal.
A confissão pública de inconformismo parte de quem se vê obstruído no acesso ao poder.
Mas o Supremo já ofereceu sinalizações. Das muitas tentativas da defesa de desmembrar o processo e devolver os réus sem foro para a primeira instância, apenas aquela levantada pelo único defensor público do processo foi acatada pela Corte.
Em benefício do Estado de Direito, a causa que os advogados defendem hoje oferece contraditório a uma denúncia que ainda está por ser julgada verdadeira.
Mas o amplo aparato mobilizado pela defesa, de advogados a bem relacionados assessores de imprensa, confronta a tese de que, desde a denúncia, o conjunto de réus formado por políticos, publicitários, banqueiros e empresários foram desprovidos de poder e influência.
A indústria da defesa posta em curso nos últimos meses também colide com a tese que ganhou ampla divulgação, a despeito de ferir o bom senso, de que o governo Dilma Rousseff nada tem a ver com a turma do banco dos réus.
De fato, parece outro o país que, desde a eclosão do mensalão, passou a disputar o noticiário com seu julgamento: ampla greve do funcionalismo público, aprovação da cota de 50% das vagas de universidades federais para alunos egressos de escolas públicas e a divulgação dos piores balanços dos últimos tempos de grandes empresas.
São fatos que margeiam os autos mas apontam no mesmo rumo. O mensalão traz os ecos de um momento em que o país, acalentado por conjuntura econômica favorável contemplou de alto a baixo amplos setores da sociedade. Foi esse país para todos, como dizia o slogan, que ajudou a segurar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no cargo.
O Brasil do julgamento depara-se com escolhas mais prementes. A classe média tradicional pode estar ligada ou completamente desinteressada no julgamento, mas não há como ficar indiferente ao fato de que uma universidade pública para seus filhos é uma possibilidade cada vez mais remota.
A mudança nas regras da poupança ou o histórico discurso em que, vaiada pelo funcionalismo, a presidente disse que mais importante para o país é assegurar empregos para a população mais frágil e sem direito à estabilidade dificilmente poderiam ter sido iniciativas de um governo que estivesse com a corda no pescoço.
Nesses enfrentamentos, Dilma Rousseff pode se beneficiar do sentimento difuso de que se busca justiça. Mais difícil é avaliar o movimento na mão inversa. Como fazer justiça se sobre esse caso acumulam-se expectativas de uma nação a ser redimida?
As expectativas de justiçamento se dão em parte porque muitas das paradas postergadas pelo Executivo e pelo Congresso acabaram, nos últimos anos, resolvidas pelo Supremo - foi o caso da validação das cotas raciais, o aborto dos anencéfalos e o reconhecimento do casamento gay.
É disso que fala o ativismo judicial. O PT que hoje se vê às voltas com o risco desse ativismo ser levado às últimas consequências num julgamento pautado pela opinião pública, colhe o que plantou por ter trocado portas de fábricas por aquelas do Ministério Público.
Mas o ativismo judicial não tem um único pai. A paternidade legítima deve ser buscada junto à Constituição de 1988. Como guardião das ambições da Carta - aquelas de que falam os slogans de campanha - o Supremo acabou sobrepujando o Legislativo. Talvez esta seja uma das razões por que hoje pareça mais fácil lembrar o nome dos ministros do Supremo do que do deputado em que se votou nas últimas eleições.
A proeminência adquirida pelo Judiciário, aliada à transmissão das sessões enfatizou personalidades em detrimento do colegiado e são uma explicação para seus desentendimentos.
Mas ao contrário dos parlamentares que têm de prestar contas de quatro em quatro anos, os ministros retiram legitimidade de decisões juridicamente justificadas. É, portanto, sob esta pressão que os votos se debruçarão sobre os autos.
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