REVISTA VEJA
Se alguma dúvida paira ainda, depois dos últimos acontecimentos, sobre o caráter e a natureza do Mercosul, a Copa Libertadores da América está aí para ajudar a dissipá-la. Mercosul e Copa Libertadores são duas instituições da América Latina. Atuam em ambientes diversos, cada qual com os próprios personagens e os próprios instrumentos, mas se unem na essência. Uma espelha e explica a outra. Na disputa da Libertadores, raro é o jogo em que um jogador não acabe triturando a canela do outro. Se um dos contendores não sai do campo para o hospital, é porque a partida se caracterizou por incomum cavalheirismo. Só teve puxões de camisa, cotoveladas e cusparadas, o que, pelos padrões do continente, é atestado de bom comportamento. No Mercosul, as cusparadas e cotoveladas dão lugar a sorrisos e apertos de mão. Mas, como se evidenciou nas últimas semanas, para quem ainda precisava de evidências, prevalece a mesma característica latino-americana de horror às regras e de opção preferencial pela malandragem e pela trapaça.
Os locutores chamam de "espírito da Libertadores" o conjunto de eventos que caracterizam o torneio. Eles dividem os times entre os que têm e os que não têm "espírito da Libertadores". Classificam as partidas mais tomadas pelo afã sanguinário dos contendores como "típicas da Libertadores". E se animam com isso. Os jogadores se estraçalham em campo, a plateia ulula, e os locutores entoam: “É o es-pí-ri-to da Li-ber-ta-dores!!!". O Mercosul é uma instituição de livre-comércio que permite a seus membros impedir o livre-comércio entre si por meio de medidas protecionistas. Quando as medidas protecionistas não bastam, inventam-se papéis necessários à circulação das mercadorias e bloqueia-se a passagem dos caminhões nas fronteiras. "É o es-pí-ri-to do Mer-co-sul!!!", comemoraria o locutor, se locutor houvesse como há no futebol.
O espírito do Mercosul ainda não tinha se revelado de modo tão eloquente quanto nos acontecimentos precipitados pela destituição do presidente paraguaio Fernando Lugo. Ao esquisito processo de impeachment sacramentado em menos de 48 horas sucedeu-se uma esquisita revoada de chanceleres dos países vizinhos para tentar reverter o quadro. Invadia-se o campo para tentar alterar o resultado do jogo. No ato seguinte, denunciou-se uma mais esquisita ainda visita do chanceler da Venezuela aos comandantes militares paraguaios, para supostamente incitá-los a intervir. Era um artifício extracampo, mais pesado do que a saraivada de objetos que nos jogos da Libertadores costuma ser lançada sobre o goleiro do time adversário, sobre o juiz, ou sobre o pobre coitado que, nos estádios mais acanhados, se prepara para bater o escanteio.
Tanto no caso da Libertadores quanto no do Mercosul, inesgotáveis são as artimanhas nos respectivos repertórios. No jogo entre Corinthians e Boca Juniors, na semana passada, o atacante corintiano Emerson foi flagrado no ato de morder os dedos do zagueiro adversário. A cena foi mostrada em toda a sua crueza graças ao novo recurso do zoom em câmera lenta nas transmissões do futebol. O corintiano, meio caído, aproveitou a mão providencialmente próxima do jogador do Boca Juniors para aplicar-lhe uma dentada. Um ensaio de canibalismo tinha lugar no velho estádio do Pacaembu, que já viu tudo, mas isso ainda não tinha visto. No Mercosul, pouco antes, aproveitara-se a suspensão imposta ao Paraguai, em razão da destituição de Lugo, para aprovar o ingresso da Venezuela no bloco. Era mais do que marcar gol em impedimento. Para aceitar novos integrantes, é necessária a aprovacão dos Congressos dos quatro países-membros, e o Congresso do Paraguai recusava-se a aceitar a Venezuela. Aproveitar a ausência de um dos sócios para passar-lhe a perna equivale a virar a mesa para melar o campeonato, coisa que nem na Libertadores ainda se ousou fazer.
Emerson marcou os dois gols da vitória corintiana, mas não só por isso, como também pelas inúmeras provocações aos argentinos, foi considerado o herói da partida. O espírito da Libertadores assim o determina, e vamos em frente. No Mercosul, os dois últimos lances foram o rompimento de relações entre Paraguai e Venezuela, por causa da ação do chanceler venezuelano junto aos generais paraguaios, e um racha no governo uruguaio, por causa da tramóia que possibilitou a adesão da Venezuela ao bloco. Tudo no espírito do Mercosul, mas talvez com peso demasiado para seguir em frente, como se nada tivesse acontecido.
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