O GLOBO - 16/06
A cidade está ocupada pela Rio+20. As direções do trânsito se modificam, os engarrafamentos se multiplicam, as escolas estão em férias compulsórias, o serviço público ganhou ponto facultativo. Aconselha-se, a quem não tem o que fazer na rua, a não sair de casa.
E no entanto, apesar de tanto transtorno, a cidade está alegre, muito diferente do que esteve há exatos 20 anos, por ocasião da Rio 92, quando o Exército teve que ocupar suas ruas a fim de garantir a paz do encontro e a segurança dos medalhões que vinham participar dele.
Podemos dizer que a cidade agora saúda a Rio+20 com entusiasmo e alegria. Não só na esperança de que ela se desenrole tranquilamente e confirme o bom momento do Rio de Janeiro, mas sobretudo porque sabemos que a Rio+20 é uma oportunidade (talvez uma das últimas, como disse Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU) de construir o futuro que nós queremos.
O homem sempre teve projetos para a natureza, mas a natureza nunca teve e nunca terá nenhum projeto para nós. E nem por isso precisamos tratá-la como inimiga, embora ela também não seja a mãe que um certo romantismo desejou que fosse. Mas assim como nos iludimos com a possibilidade de harmonia com a natureza, erramos gravemente quando inventamos de dominá-la, controlá-la, modificá-la, segundo nossos exclusivos interesses.
A cultura humana é uma espécie de vírus a atazanar o corpo do mundo com suas invenções. Nós somos os únicos filhos dele que resolvemos organizar sua vida, dizer para onde o mundo deve seguir. Mas ele é surdo, não tem nada a ver com nossas ilusões e vai em frente conforme suas próprias necessidades.
Todas as criações do universo são parte constitutiva da natureza, participam de sua existência sem mando sobre seus rumos. Mas quando o homem inventou a cultura, criou a ilusão arrogante de que o universo podia estar a seu serviço. Fomos longe demais e, agora, quando não temos mais esperança de harmonia com ela, nem podemos mais sonhar com o domínio sobre ela, só nos resta negociar com a natureza.
Negociar significa saber até onde podemos ir nessa nossa irreversível pretensão de criadores, o que é possível fazer para seguirmos em frente sem pensar em ocupar um espaço a que não temos direito. Significa ceder no insensato, para ganhar no razoável. Ou, como dizia Raymond Aron a propósito da política humana, "a opção nunca tem a ver com uma luta entre o bem e o mal, mas com o preferível e o detestável".
O século 21 tem-nos surpreendido com uma constante queda da humanidade do alto dos tronos em que os humanismos triunfalistas a coroaram soberana, do controle sobre a história ao fim de todas as tiranias, da utopia cristã à sociedade sem classes, da harmonia com a natureza ao poder sobre o universo. Nenhum desses triunfos tão anunciados se realizou, nem tem como se realizar; e nós temos dificuldade em descer do carro alegórico de nossas ilusões.
Ilusões até justificadas pelas decepções com o mundo e conosco, nossas vidas e relações com os outros. Tenho um amigo que garante que o Juízo Final foi bolado para ser um gesto de Deus a nos pedir desculpas pela cagada que Ele fez. Aqueles que forem capazes de O perdoar terão direito ao céu.
O mundo vai estar sempre muito aquém de nossos projetos e foi por isso mesmo que inventamos a cultura. Nossa intervenção no mundo é única, como nenhum outro animal jamais ousou fazer. Arte, ciência, conhecimento, tecnologia, tudo isso é produzido por nossa insatisfação com as coisas como elas são, por nosso desejo de mudá-las. E se ignorarmos esse desejo, perderemos o sentido da existência de nossa própria espécie.
Negociar com a natureza significa conhecer os limites de nossos desejos e aprender a domá-los. Uma espécie de acordo de paz entre o vírus da cultura humana e o corpo da natureza, como as bactérias e os micróbios diversos convivem em paz em nosso próprio corpo. Seria uma atitude tirana acharmos que somos livres para fazermos o que bem entendermos do que está à nossa volta.
Para celebrar a cidade alegre, nada mais natural do que usar uma poeta e a imagem da primavera. A poeta é Cecília Meirelles, a primavera está nesse seu texto: "A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba o seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega."
Salve, salve Rio+20, o anúncio da primavera no inverno carioca!
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