FOLHA DE SP - 06/06
Que injusto é o mundo: tanta saliva gasta discutindo se o Kindle acabará com o livro e se o iPad engolirá o jornal, mas nem uma lágrima rolada pela carta, essa personagem central dos últimos séculos, que foi solapada pelo e-mail e sumiu sem que nos déssemos conta, sem que pudéssemos velá-la ou guardar luto. Partiu da vida para entrar na história e não deixou, vejam só, sequer uma carta de despedida.
Claro que ainda nos chegam envelopes por baixo da porta, todos os dias, mas isto que agora encontramos próximo ao capacho assemelha-se tanto a uma carta como umjingle a uma sinfonia. Contas, propagandas, cardápio de restaurante chinês: tristes arremedos das gloriosas folhas de papel que outrora relataram o descobrimento de continentes, alimentaram amores impossíveis, aproximaram amigos distantes; ringues nos quais travaram-se as mais apaixonadas pelejas intelectuais.
Não, não cederei à tentação barata da nostalgia dizendo que o mundo era melhor antes, que as emoções escritas à mão são mais verdadeiras que as digitadas no teclado. Uma longa carta que levou três semanas para chegar da Europa não bate todos os encontros que nos proporciona o e-mail numa única tarde...
Quem mais perdeu com a morte da carta não foi a amizade, meus caros, não foi o amor nem a profundidade: o grande órfão do declínio postal foi o carteiro. Esse distinto profissional, que em sua época áurea era um pouco enfermeiro, bombeiro, cupido -um serafim de baixo escalão, trazendo em sua bolsa verde a preciosa literatura cotidiana-, profanou-se, transformou-se em traficante, cobrador, garoto-propaganda de drenagens linfáticas e Chops sueys.
Havia uma ingenuidade na figura do carteiro, algo que pertencia essencialmente ao século 20 e que não cabe no 21: um homem a pé ou de bicicleta, um personagem do Jacques Tati, que vinha entregar à mão um bilhete escrito também à mão. Tudo isso se foi com um clique. Para o nosso bem, é verdade, mas se foi; era bonito e deve, portanto, ser lembrado.
É com este intuito que eu sugiro que a categoria processe a Microsoft por danos morais. Ou melhor, que processe os herdeiros de Samuel Finley Breese Morse, que por volta de 1835, em Poughkeepsie (NY) inventou o telégrafo, tornando possível enviar informações através de um fio -e deu no que deu.
O processo não visaria uma compensação material, mas simbólica (afinal, os carteiros não perderam os empregos, apenas a aura). Que seja construída, na praça mais simpática de cada cidade, uma escultura discreta, dedicada à memória de todo aquele que arriscou a vida pelo mundo, no frio cortante e no calor escaldante, perseguido por cachorros e à mercê de malfeitores, para que matássemos nossas saudades: um Monumento ao Carteiro Desconhecido. E -quem sabe?-, também ao século 20, que mal terminou e já nos parece tão estranhamente distante.
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