Valor Econômico - 29/05
Analistas culpam os países devedores ("gastadores") pela crise que estamos vivendo, ressaltando a moderação virtuosa dos países credores. Tratam de afastar o "foco" das patifarias feitas pelos intermediários financeiros, com o apoio das "teorias" que continuam a defender. Não pode haver a menor dúvida. A crise foi construída pela desmontagem da regulação financeira aprovada nos anos 30 e pela péssima política monetária dos Bancos Centrais apoiados pela parte mais vocal e instrumentalizada da Academia.
Para entender a crise da Eurolândia a contabilidade nacional pode ajudar. Como a Terra é finita, a soma das exportações totais de todos os países é, necessariamente, igual à soma das importações totais de todos os países, de onde se deduz que o balanço em contas correntes de um país só pode crescer se o de outros diminuírem na mesma magnitude. O Fundo Monetário Internacional nasceu para controlar os déficits em conta corrente autorizando mudanças eventuais das taxas de câmbio fixas. Quando se generalizou a teoria que os movimentos de capitais eram absolutamente virtuosos, o sistema de câmbio flutuante passou a desempenhar esse papel.
Não há instrumento eficaz para impedir o país de manter um saldo em conta corrente permanentemente positivo para aumentar o seu PIB. De uma forma ou de outra, ele encontra a contrapartida no déficit em conta corrente de outros que veem reduzir o seu PIB. O que fazer quando a "importação" transforma-se numa importante componente do PIB do país devedor? Sem ela o PIB desaba, com ela a demanda interna cai e o PIB retrai-se. Pela Contabilidade Nacional, a demanda total é igual às despesas de consumo somadas à de investimento, dos gastos do governo e do saldo em conta corrente. Quando esse último é negativo, reduz o crescimento do PIB e o consumo e o investimento privado têm pouca probabilidade de aumentarem. Se o governo deseja manter (como todo governo que se preza) um alto nível de utilização do seu capital e de sua mão de obra, a sua propensão é aumentar os gastos públicos e incorrer em déficits fiscais.
Uma das mais interessantes identidades da Contabilidade Nacional é que, por construção, a soma da diferença entre os tributos e os gastos públicos e a diferença entre a poupança e o investimento privados é, necessariamente, igual ao déficit em conta corrente. Mas uma identidade não revela qualquer relação de causalidade. Ela foi, entretanto, a origem da lenda urbana dos déficits gêmeos: os déficits do governo causam o déficit em conta corrente, coisa que até hoje alguns analistas das melhores famílias continuam repetindo.
Economistas são exímios contadores de histórias que, em geral, não contêm um substrato empírico realmente seguro. A história que estamos contando aqui é que existe um outro lado: é o déficit em conta corrente que enfraquece o PIB que leva à ação defensiva dos governos que geram os déficits públicos! É tão boa quanto a anterior e, também, sem substrato empírico seguro. A solução do problema pelos mais sofisticados instrumentos econométricos que estudam a direção da causalidade foi incapaz, até agora, de resolvê-lo acima de qualquer dúvida.
Mas não importa o que dizem as "histórias" e o que não diz a econometria: os dois déficits têm consequências. O déficit fiscal acumulado vai produzindo uma dívida interna (e externa quando o governo usa tais recursos para cobrir seu custeio ou investimento) que com o tempo levanta dúvida sobre sua solvência e pressiona a taxa de juro real interna, o que tende a valorizar a taxa de câmbio e ampliar o déficit em conta corrente. O déficit em conta corrente acumulado vai, por sua vez, aumentando a dívida externa e produzindo o mesmo efeito, gerando dúvida sobre sua solvência dificultando paulatinamente o seu financiamento, o que eleva o "risco país" e, com ele, o custo de todo o estoque da dívida.
O Brasil já viveu a dramaticidade dos momentos em que os "credores" perdem a paciência com os "devedores" e gera-se uma crise de "morte súbita". Felizmente soubemos aproveitar os últimos anos: 1º) aprovando uma Lei de Responsabilidade Fiscal que paradoxalmente fortaleceu nosso federalismo desregrado e criou, de fato, uma área monetária ótima; e 2º) um vento de cauda do comércio exterior que sem nenhum esforço exportador (continuamos a ter a mesma percentagem, 1,3%, que há 50 anos temos nas exportações totais) resolveu nosso problema externo.
E isso é tudo que falta à zona do euro, a única moeda que não tem um país! Os argumentos anteriores mostram que a ideia que os "credores" são virtuosos e os "devedores", bandalhos gozadores da vida, pode ser incorreta. Os credores com suas políticas exportadoras agressivas só tiveram sucesso porque os outros não quiseram, ou não puderam, tomar medidas defensivas como a desvalorização cambial e o aumento de tarifas. Alguns países de fato cometeram excesso fiscal maior do que os mais virtuosos, mas nada que se compare, em importância, aos déficits externos que a mecânica de funcionamento do euro lhes impôs.
É por isso que virtuosos como a Alemanha precisam agora contribuir: 1º) aumentando a sua demanda global para ajudar as exportações dos outros; 2º) aceitando que o Banco Central Europeu cumpra o seu papel de emprestador de última instância; e 3º) aprovando a emissão de títulos solidários para atrair o setor privado no financiamento dos investimentos.
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