O artista mineiro Paulo Nazareth saiu de uma favela perto de Belo Horizonte e foi a pé até os EUA; lá, integrou a principal feira de arte do país, e agora se prepara para expor seus trabalhos em galeria de SP
Seis meses e 15 dias. Esse foi o tempo que Paulo Nazareth, 34, gastou para ir a pé e de carona de seu "conjunto habitacional favelizado" em Palmital, Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte (MG), para Nova York, nos EUA. Calcula ter caminhado 700 km e emagrecido sete quilos.
A jornada foi feita de chinelos e com uma sacola de pano com poucas roupas a tiracolo. Ele diz não ter lavado os pés nesse tempo todo. Transformou a sujeira acumulada em mais uma de suas obras de arte, registrando tudo com uma câmera fotográfica. Quando chegou a NY, banhou os pés no rio Hudson.
"Foi como arrancar uma pele. A poeira já fazia parte do meu pé", diz. "Não lavo os pés quando vou para os EUA para levar um pouco de poeira da América Latina para lá", contou, por Skype, à repórter Lígia Mesquita, da Cidade do México.
Um ano, um mês e cinco dias depois de ter deixado Palmital, o artista já faz o percurso de volta ao Brasil. Está há um mês no México, na casa de uma amiga. "Mas durmo na rua, acampo, fico em hotelzinho barato. Me viro."
"Espere um minuto, por favor. Preciso colocar água no feijão", interrompe a conversa. Ele conta que adiou o retorno ao Brasil porque perdeu o passaporte há alguns dias. "Acho que foi brincando de bambolê com uma criança na rua."
Vai fazer a última parte do trajeto de avião. Sua galeria brasileira, a Mendes Wood, enviou a passagem aérea. Se tudo der certo, ele desembarca em SP a tempo de participar da abertura da exposição "Notícias da América", no próximo dia 12. Na ocasião, será lançado o livro "Paulo Nazareth, Arte Contemporânea/Ltda" (Cobogó).
Paulo chegou a Nova York no dia 26 de outubro de 2011. Ficou dois dias e depois foi para a Guatemala. No começo de dezembro, retornou aos EUA, porque tinha um compromisso agendado: participar de uma das maiores feiras de arte do mundo, em Miami, a Art Basel. "Se fosse pra viver nos EUA, viveria no México. Se fosse pra viver em Miami só por causa da praia, viveria no Rio", diz.
Na feira, exibiu uma instalação que bolou durante a viagem: uma Kombi repleta de bananas. "A inspiração foi a República das Bananas."
Desembolsou US$ 4.000 no carro e US$ 800 em bananas vindas da Costa Rica.
A obra foi arrematada por US$ 40 mil por um colecionador israelense. "Foi interessante um israelita comprar a Kombi. Fico pensando nessa relação histórica. A Kombi é um carro modelo alemão que quase não existe na Guatemala. Já as armas israelenses estiveram naquele país na época da ditadura."
Ao lado do carro, Paulo ficava segurando a placa "Minha imagem de homem exótico à venda". Cobrava US$ 1 por foto. E vendia bananas a US$ 10. No final, conseguiu US$ 600. "Cobrava pelo jogo da imagem e uma suposição do que o outro pensa dessa imagem, o exotismo da América Latina. O índio, o negro, o outro", diz.
A participação na Miami Art Basel, além do dinheiro, lhe rendeu reportagem no "New York Times". E a publicação de uma foto sua na editoria de moda do site do jornal americano, em que aparece com um prato de comida na mão em uma festa da feira de arte que reuniu nomes como Damien Hirst e Marina Abramovic. "Eu com minha camisa de um dólar, comprada na Guatemala, pés sujos e meu saco de estopa. A festa era VIP, num hotel de grã-fino. E tinha muita verdura. Comi bastante", lembra.
Paulo é vegetariano desde os 15 anos. Garante que essa opção não tem nada a ver com seu primeiro emprego, aos 12, em uma fazenda. Cuidava de 400 porcos. "Mas nunca matei nenhum", diz.
Apesar de não comer carne, fez uma série de fotos em que aparece com caveiras de boi, sangue na camisa e pedaços do alimento cru na cabeça. "Antes não comia carne porque era demasiadamente cara. Depois, virou hábito. As fotos são para mostrar a presença forte da carne na nossa culinária; é considerada o que há de melhor."
Ao trabalho na pocilga se sucederam outros como jardineiro, cuidador de cachorros, empregado doméstico, vendedor de pipoca, de feijão, abacate e picolé, padeiro, balconista, limpador de banheiros e agente de saúde. Até decidir que seria artista.
Filho de uma empregada doméstica que sozinha criou a ele e a mais sete irmãos depois que o pai, vendedor ambulante, saiu de casa, quando ele tinha 12 anos, concluiu o segundo grau em escola pública. Diz que guardou dinheiro para fazer cursinho e prestar vestibular. Não passou da primeira vez. No ano seguinte, estudando sozinho, entrou em Belas Artes na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Na faculdade, fez teatro de bonecos e gravuras que vendia a R$ 2.
Paulo fez residências artísticas. Em uma delas, ficou 13 dias em silêncio. Saindo de lá criou a série de imagens "Para Lembrá-lo de Permanecer em Silêncio". Em 2006, ganhou bolsa e ficou um mês na Índia. "Foi a primeira vez que andei de avião."
Em 2010, integrou o JA.CA (Jardim Canadá Centro de Arte e Tecnologia). Nessa incubadora de novos artistas em Belo Horizonte, conheceu dois dos sócios da futura galeria Mendes Wood, inaugurada meses depois. Desde então, faz parte do portfólio do espaço, que representa, entre outros, Tunga.
Depois de se formar, o mineiro decidiu fazer linguística. Por isso, diz, muitas de suas obras têm relação com a escrita. Na série "Cabelo de Preto", que imprimiu em panfleto, ele fez performances em que, diz, engoliu seu próprio cabelo. No texto, escreve: "Sair de casa [Palmital, periferia de Santa Luzia] com a boca repleta de meu cabelo preto/ Pegar ônibus coletivo/ 13 de maio de 1888 assinatura da Lei Áurea".
"É sobre cabelo bom e cabelo ruim. O meu cabelo sarrará crioulo, cabelo de preto, é muito bom. É tão bom que pode ser servido como refeição principal de qualquer menu. Comia meu cabelo para preservar essa parte em mim", afirma. "Mas hoje parei. Depois que eu fazia isso tinha que tomar azeite."
Panfletos como este, que antes, diz, vendia em barraquinhas em Palmital, hoje são comercializados na galeria Mendes Wood. Lá, a obra mais barata de sua autoria custa US$ 400. Com o dinheiro da instalação vendida em Miami, conta que "estamos ajeitando o barraco lá em Palmital", onde mora com a mãe, um irmão, uma irmã e dois sobrinhos.
No fim do ano, ele será o artista mais jovem a participar de uma mostra na Casa de Vidro, projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi, que terá curadoria do suíço Hans Ulrich Obrist. E, no ano que vem, vai integrar a Bienal de Lyon, na França.
"Sei viver com pouco. Eu já sou rico. Minha mãe dizia: 'Filho, somos ricos da graça de Deus'", afirma. Seu sonho de consumo: "Às vezes gosto de tomar sorvete de araticum [fruta do cerrado]".
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