sábado, fevereiro 04, 2012
Quem tem medo de Stoppard? - SILVIANO SANTIAGO
O ESTADÃO - 04/02/12
Em pesquisa original sobre a obra crítica de Antonio Candido, Célia Pedrosa desentranhou da revista Clima (n.º 3, 1941) um manifesto literário em que o futuro mestre defende o "grouchismo". De maneira risonha e irreverente, Candido teoriza a partir dos filmes dos Irmãos Marx, então em voga, e das estripulias de Groucho. Tempos sombrios requerem a seriedade de propósitos; no entanto, a alegria anárquica do script vaudevilesco e a inventividade comportamental dos Marx balizam uma visão crítica de mundo, derrisória e feliz. Antonio Candido escreve em 1941: "Nosso tempo está cheio de credos novos. Entre os seus inumeráveis pregadores, entretanto, poucos têm a profundidade e a inspiração de Groucho Marx". Justifica: "Ele compreendeu melhor do que ninguém, que a crítica ao preconceito, assim como o estabelecimento de uma nova base para a conduta, não podem estar presos à justificação doutrinária – retórica, maçante e ineficiente".
Primeiro da santíssima trindade, Groucho vem associado a dois outros heróis do século, Lenin e Freud. Candido comenta: "Wladimir Ilyich é o destruidor que espera tudo ruir para experimentar uma nova solução. O professor Freud é mais grouchiano, pois propõe ao mesmo tempo em que depõe; mas é um grouchismo interior, com repercussões lentas e incertas na conduta imediata". Groucho tinha compreendido, continua Candido, que "não deve haver fases distintas na transformação; que não se deve destruir para construir em seguida. O mesmo ritmo deve compreender no seu embalo a destruição e a reconstrução". Célia Pedrosa observa que as ideias expostas em O Grouchismo encaram determinados modelos dogmáticos de análise literária e, pelo viés da iconoclastia, tornam sérias "as formas irreverentemente inovadoras de crítica ao pensamento institucionalizado". Candido não poderia ter imaginado que na década de 1970, quando novos credos e inumeráveis pregadores tinham nascido na abundância econômica, surgiria na Inglaterra um dramaturgo de origem checa, Tom Stoppard, que levaria até as últimas consequências o grouchismo. Para escrever Pastiches (1974), hoje incluída no volume Rock’n’Roll e Outras Peças (Companhia das Letras, 2011), Stoppard recorre à liberdade de baralhar autores & livros, a que tem direito o ensaísta literário, para – com recursos dramáticos tomados ao vaudeville e à comédia dita de pastelão – dar sentido a obra caprichosa do acaso. Em 1917, três exilados famosos sobrevivem soltos em Zurique. O romancista irlandês James Joyce, o dadaísta romeno Tristan Tzara e o político russo Lenin. (Tzara substitui Groucho; Joyce, Freud, e Lenin é Lenin.) "Zurique durante a guerra", diz um personagem, "era ímã para refugiados, exilados, espiões, anarquistas, artistas e radicais de todos os tipos".
Stoppard convida Tzara, Joyce e Lenin, distantes um do outro pela imprevisibilidade do mundo em guerra, a se encontrarem no palco e a trocarem falas e farpas. Canções, dança, paródias, pastiches, citações, alusões, trocadilhos e indiretas mantêm aceso o espectador e lhe despertam o riso. A comicidade oscila entre o requinte e a insolência, entre o pseudodidático e o surreal, e a visão histórica proposta por Stoppard se afirma por entre as brechas abertas por grandes ideias eruditas e versos ao gosto do populacho. Em homenagem a Candido, leia-se esta fala retirada da peça: "Eu sempre achei que a ironia entre as camadas inferiores é o primeiro sinal de uma consciência social que começa a despertar".
Stoppard concretiza o traço de união entre os três gênios pela figura de Henry Carr, funcionário medíocre do consulado inglês. Na época, trabalha como ator em peça de Oscar Wilde, encenada por Joyce, e se envolve – travestindo-se de irmão de Tzara – com o serviço de espionagem britânico. A peça precipita encontros e desencontros imaginários e verossímeis, que serão dramatizados da perspectiva errática das lembranças de Carr. Em cena memorável, Gwendolen e Cecily, secretárias respectivamente de Lenin e de Joyce, retomam de forma hilária o esquete Mr. Gallagher e Mr. Shean que, desde 1921, faz parte da rotina dos espetáculos de vaudeville e se torna mundialmente famoso no filme A Vida É um Teatro (Ziegfield Girl, 1941).
A graça do pastiche não fica apenas por conta das alegres secretárias. O princípio de composição da peça é dado de modo metafórico por Tzara e pelo jogo poético surrealista conhecido por "cadavre exquis". Na cena de abertura, o dadaísta recorta com tesoura palavras de uma folha de papel, joga-as dentro dum chapéu e as baralha. Em seguida, retira osso a osso de lá e, com o "cadáver suculento", compõe versos de sentido aleatório e absurdo. Sentido original – se houver – estaria segredado pela folha esfrangalhada. Mais tarde, na peça, Tzara "aperfeiçoará" com a tesoura um soneto de Shakespeare. Diz ele, em resumo: "Na verdade, tudo é Acaso".
Joyce, em contraste, vale-se de "limericks" (poema humorístico ou de teor chulo) nos momentos em que descansa do trabalho de pensar o romance que irá "sair de referências à Odisseia de Homero e ao Guia das Ruas de Dublin em 1904". Outro contraste: acompanhado da esposa, Lenin envereda pela redação de um catatau sobre o imperialismo ("o capitalismo sem luvas", no dizer de Carr) e será surpreendido em meio à peça pela notícia da revolução soviética. O conflito entre as ideias e ideais de Joyce e de Lenin sobre política e estética se desenvolve no segundo ato da peça (o primeiro é dominado por Tzara). Em carta ao editor Lunatcharsky, Lenin escreveria (lembra sua esposa): "Você não tem vergonha de publicar cinco mil cópias do novo livro de Maiakovski? É uma bobagem, uma estupidez, uma tremenda estupidez afetada". Comenta Carr, o espião britânico: "Não havia nada errado com Lenin, fora a política".
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