sábado, janeiro 07, 2012

Homens partidos ao meio - SILVIANO SANTIAGO


O Estado de S.Paulo - 07/01/12


RF - as iniciais de Ramon Fernandez (1894) estão inscritas no caixão que, em agosto de 1944, é velado na Igreja de Saint-Germain-des-Prés, em Paris. Colaboracionistas e intelectuais envergonhados, como François Mauriac, velam o defunto. As iniciais do brilhante crítico literário dos anos 1920 e 1930 são uma paródia de outras, as da República Francesa, que ele repudia publicamente a partir de 1937. Naquele ano torna-se membro ativo do PPF, partido fascista liderado pelo medíocre e corrupto Jacques Doriot. Colaboracionista, RF faz parte da comitiva de intelectuais franceses que viaja em outubro de 1941 a Weimar. Goebbels é o anfitrião. Ramon morre 20 dias antes da liberação de Paris. A embolia libera-o do pelotão de fuzilamento, que dá por findos os dias do jornalista Robert Brasilach, e do suicídio, que leva a vida do companheiro Drieu de la Rochelle.

Assim se abre Ramon (2008, hoje em livro de bolso), biografia do pai escrita pelo filho, o acadêmico e romancista Dominique Fernandez. Aos 80 anos, Dominique tenta compreender o pai que se quebra em dois e vive duas vidas sucessivas e contraditórias. Primeira vida. A do ensaísta apresentado por Marcel Proust ao grupo responsável pela NRF, revista publicada pela Gallimard. Intelectual de esquerda e quase comunista em 1934, é autor de livros indispensáveis sobre André Gide (de que me vali com proveito quando escrevia tese de doutorado), Marcel Proust e Molière. Seus artigos são admirados e citados por escritores como T. S. Eliot e Wallace Stevens. Segunda vida. Ramon vira a casaca. De 1940 até a morte, passa a emprestar o prestígio do nome e das palavras à política da Colaboração. Ao lado de Georges Montandon, teórico do antissemitismo francês, discursa em estádio desportivo de Paris. Desde então, sua obra crítica mora no baú da inconveniência. Só agora está sendo recuperada.

O capítulo da Ocupação é confuso, lembra Alice Kaplan, autora de The Trial and execution of Robert Brasilach (2000), e muito lixo foi varrido para debaixo do tapete. Sartre tem duas peças (Huis-clos e As Moscas) encenadas com a permissão das autoridades alemãs. Na plateia, oficiais germânicos. Para ter O Mito de Sísifo publicado, Albert Camus aceita a supressão do capítulo sobre Kafka. Antes de se casar com o resistente Dionys Mascolo, Marguerite Duras, née Donnadieu, mora no andar de baixo dos Fernandez e trabalha como secretária para o comitê de censura ao uso do papel, montado pelo governo de Vichy. Enquanto esconde o marido judeu, Colette lança dois livros identificados com a Colaboração.

Dominique torna o capítulo da Ocupação menos confuso e, por refrear o sentimentalismo barato que corroeria as melhores páginas da biografia, mais duro e mais asfixiante. O narrador se exaure nas contradições paternas e se libera em julgamentos abruptos. Ao contrário de Alice Kaplan, professora na Universidade de Yale, Dominique opta por não fazer pesquisa em biblioteca e arquivo público. A Antoine Compagnon, professor do Collège de France, confessa que "o livro foi escrito sem esforço". Valeu-se principalmente da memória e de documentos familiares, entre eles os diários (carnets) recobertos cotidianamente pela letra da mãe, jansenista de formação e amante da literatura. Dos vários cadernos Dominique retirou a cronologia e parte da trama.

Confessa ainda que, retrospectivamente, a figura ambivalente do pai está por detrás de muitos dos seus livros, em especial dos que versam sobre o músico Tchaikovski, o pintor Caravaggio e o cineasta Pasolini. Sem se dar conta, ele tinha escrito um único livro: o fracasso ao final da vida joga o artista glorioso no despenhadeiro.

No caso da biografia paterna, a mãe castradora e a esposa rica e generosa transformaram o filho e o marido no pai Ramon. Sem profissão definida, cheio de caprichos mundanos e alcoólatra, Ramon passa por um caráter débil, que não estava à altura das ideias que defendeu. Na revista Commentaire, Jean-Thomas Nordmann julga que o filho, por ter usado cores berrantes na pintura da esquizofrenia política do pai, tenha subestimado a importância do ensaísta literário.

Viajemos até o presente. Em corajoso filme biográfico, outro filho, Carl Colby, resolve retirar da sombra o pai que foi Chief of Station em Saigon durante a guerra do Vietnã e, entre 1973 e 1976, diretor da CIA e responsável pela Operação Phoenix. À semelhança da atriz Nathalie Wood, Colby morreu em condições misteriosas no ano de 1996. Refiro-me a The man nobody new: In search of my father, CIA spymaster William Colby (2011). O filme leva algumas vantagens sobre o livro de Dominique. O narrador aparece com a família paterna em fotos e filmecos caseiros, mas o forte são as apropriações das imagens e sequências sangrentas e apocalípticas difundidas pelo noticiário dos jornais e da televisão. Sobram-lhe os fatos que faltam à trama psicológica de Ramon.

Em The man nobody knew o filho comparece sob a forma de voz em off, um tanto expositiva. Ele "escreve" o filme, contrastando as imagens familiares com as chocantes da espionagem e da guerra. As imagens gritam por ele. Católico fervoroso (duas filhas são batizadas na Basílica de S. Pedro), o pai serve na Itália pós-fascista que se inclina ao comunismo. No Vietnã, o homem-família, acompanhado da esposa Bárbara, torna-se amigo íntimo do presidente Diem e dos seus. O Senado sabatina o militar pela condução da Operação Phoenix. Mea culpa. O religioso incrimina o militar. Acrescente-se que, à semelhança de Um Método Perigoso, novo filme de David Cronenberg, The man nobody knew reafirma o peso da religião nas discussões ideológicas e intelectuais. Um colaboracionista católico? Um católico na CIA? A psicanálise nas mãos de Jung, ariano suíço?

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