VALOR ECONÔMICO - 01/12/11
Às vésperas da improvisada reunião que Dilma Rousseff e Cristina Kirchner irão manter em Caracas, na grande cúpula bolivariana que será promovida por Hugo Chávez, a venda de parte das ações da Usiminas para a argentina Techint tornou-se a típica boa notícia em relação à qual as duas mandatárias poderão celebrar o avanço da integração entre as duas grandes nações do continente. Se a negociação foi bem recebida pelo mercado argentino e frustrou a Bovespa, nas chancelarias dos dois países não houve divergência: a transação foi avaliada como muito oportuna.
Por um breve instante, deixa-se em segundo plano o fato de que Dilma e Cristina deverão debater o pouco que podem fazer para conter o contágio em seus países da crescente instabilidade financeira internacional, num contexto em que o investimento direto pela primeira vez recebeu uma sinalização visível de mão dupla.
A investida argentina na siderurgia brasileira atenua o fato de que a assimetria entre Brasil e Argentina tornou-se crescente ao longo de quase trinta anos de integração. Também joga-se para o lado a dificuldade de ação dos dois governos diante da primarização das exportações promovida pelo cliente que mais cresce, a China. O colosso asiático vai fazendo prevalecer um modelo econômico em que recebe minério e devolve manufaturados, adquire grãos e os industrializa de modo doméstico, enquanto volta e meia guloseimas argentinas e sapatos brasileiros mofam em contêineres aguardando liberação na fronteira..
Os US$ 2,7 bilhões que a Techint usará para adquirir as ações aumentam em cerca de 50% o investimento direto de empresas argentinas no Brasil nos últimos anos, segundo estimou o embaixador brasileiro junto à Casa Rosada, Enio Cordeiro. Na via brasileira, as inversões superam US$ 12 bilhões e envolveram a aquisição de ícones argentinos, como a cerveja Quilmes, a refinaria Perez Companc, a cimenteira Loma Negra, a companhia têxtil Alpargatas, entre outras.
A Techint fez o investimento de maior visibilidade, mas já estava presente no Brasil por meio de uma subsidiária há alguns anos e está longe de ser a única investidora argentina no País. Há poucos meses, o empresário Eduardo Eurnekian, concessionário de aeroportos, ganhou a licença para construir o novo aeroporto de Natal. Grandes comercializadoras argentinas ingressaram no mercado brasileiro de soja e vice-versa. No encontro de Caracas, a presidente argentina deve se empenhar para ampliar esta lista. Tentará conseguir de Dilma uma sinalização de que empreiteiras argentinas poderão obter contratos governamentais nas obras para a Copa e para os Jogos Olímpicos de 2016.
O embaixador lembra que algumas empresas já conseguem a maior parte de seu faturamento no Brasil, exatamente em função do mercado consumidor brasileiro ser cinco vezes maior. A integração entre as cadeias produtivas faz com que os participantes das rodadas de negociações deixem, de maneira crescente, de ser separados pelo idioma espanhol ou o português. Cordeiro cita o caso da Coteminas, que era atingida por medidas protecionistas argentinas em um segmento da cadeia têxtil e beneficiada em outro, já que produz nos dois países.
O comércio cresce com mais vigor nos casos menos conflituosos, como o da indústria automotiva, em que as montadoras distribuem os seus produtos entre as suas unidades nos dois países. O fluxo comercial de veículos já responde por 45% de uma pauta exterior que pode chegar a US$ 40 bilhões este ano, nos cálculos da embaixada.
Do ponto de vista político, estas transações vão desenvolvendo um esboço de burguesia empresarial binacional, algo muito mais relevante na Argentina do que no Brasil, em razão da diferença de tamanho dos dois países. É um entrelaçamento que tende a reforçar o que na Argentina usualmente se chama de "brasildependência", em um momento em que o Brasil descerá a ladeira da crise e que crescimento algum do mercado doméstico deverá compensar a depressão europeia e a retração no fluxo de capitais.
A relação transversal das empresas pode também ser um convite aos governos dos dois países para transformarem o Mercosul em uma alavanca para o protecionismo. O aumento da alíquota de diversos produtos dentro da Tarifa Externa Comum é um tema de especial interesse do governo brasileiro para a próxima reunião de cúpula dos quatro países do Cone Sul, em Montevidéu, quatro dias antes do Natal. "O que está nos unindo não é o amor, mas o espanto", comentou há algumas semanas o presidente da Câmara do Comércio Argentina-Brasil, Jorge Aparicio.
Procurar se proteger do mundo pelo isolamento é quase um dogma para o kirchnerismo e de forma alguma um traço marcante da administração brasileira nos últimos anos. A gravidade da crise, entretanto, pode produzir uma nova convergência binacional.
Do lado argentino, Cristina tende a estancar a deterioração fiscal com uma flexibilização na heterodoxia: começa a citar a inflação como um problema, assiste à elevação de juros no País e corta subsídios ao consumo. Do lado brasileiro, Dilma ensaia iniciar um novo momento de políticas anticíclicas, com a redução da Selic. São movimentos de intensidade diferente, mas em sentidos contrários. Não é impossível que o encontro das duas curvas se dê na capital venezuelana.
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