Há uma estátua do Carlos Drummond de Andrade sentada num banco da praia de Copacabana, uma estátua do Fernando Pessoa sentada em frente ao café A Brasileira, em Lisboa, uma estátua do Mario Quintana sentada num banco da Praça da Alfândega de Porto Alegre. Salvo um cataclismo inimaginável, as três estatuas jamais se encontrarão. Mas, e se se encontrassem?
– Uma estátua é um equivoco em bronze – diria o Mario Quintana, para começar a conversa.
– Do que nos adianta sermos eternos, mas imóveis? – diria Drummond.
Pessoa faria “sim” com a cabeça, se pudesse mexê-la. E acrescentaria:
– Pior é ser este corpo duro sentado num lugar duro. Eu trocaria a eternidade por uma almofada.
– Pior são as câimbras – diria Drummond.
– Pior são os passarinhos – diria Quintana.
– Fizeram estátuas justamente do que menos interessa em nós: nossos corpos mortais.
– Justamente do nosso exterior. Do que escondia a poesia.
– Do que muitas vezes atrapalhava a poesia.
– Espera lá, espera lá (Drummond) Minha poesia também vinha do corpo. Minha cara de padre era um disfarce para a sensualidade. Minha poesia dependia do corpo e dos seus sentidos. E o sentido que mais me faz falta, aqui em bronze, é o do tato. Eu daria a eternidade para ter de volta a sensação na ponta dos meus dedos.
Pessoa:
– O corpo nunca ajudou minha poesia. Eu e meus heterônimos habitávamos o mesmo corpo, com a sua cara de professor de geografia, mas não nos envolvíamos com ele. Nossa poesia era à revelia dele. E fizeram a estátua do professor de geografia.
Quintana:
– Pra mim, o corpo não era nem inspiração nem receptáculo. Acho que já era a minha estátua, esperando para se livrar de mim.
– Pessoa – diria Drummond –, estamos há meia hora com você nesta mesa do Chiado, e você não nos ofereceu nem um cafezinho.
– Não posso – responderia Pessoa. – Não consigo chamar o garçom. Não consigo me mexer. Muito menos estalar os dedos.
– Nós também não...
– Não posso reagir quando sentam à minha volta para serem fotografados, ou retribuir quando me abraçam, ou espantar as crianças que me chutam, ou protestar quando um turista diz “Olha o Eça de Queiroz”...
– Em Copacabana é pior – diria Drummond. – Fico de costas para a praia, só ouvindo o ruído do mar e o tintilar das mulheres, sem poder me virar...
– Pior, pior mesmo – diria Quintana – é estar cheio de poemas ainda não escritos e não poder escrevê-los, nem em cima da perna.
Os três concordam: o pior é serem poetas eternos, monumentos de bronze à prova das agressões do tempo, fora poluição e vandalismo – e não poderem escrever nem sobre isto.
As estátuas de poetas são a sucata da poesia.
E ficariam os três, desolados e em silêncio, até um turista apontá-los para a mulher e dizer.
– O do meio eu não sei, mas os outros dois são o Carlos Gardel e o José Saramago.
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