Pressa e descontrole nos gastos da Copa
VÍCTOR GARCÍA RODRÍGUEZ
FOLHA DE SP - 28/09/11
Em um Estado famoso pela impunidade, a intervenção jurisdicional nas obras públicas só é eficaz antes do desembolso integral
A discussão acerca da legalidade da dispensa de licitação para as obras da Copa do Mundo e da Olimpíada, que agora chega ao Supremo Tribunal Federal, padece de uma redução de foco.
A dúvida com que terão de se haver aqueles que julgarão a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.655 -na qual a Procuradoria-Geral pede que seja suspenso o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) da lei 12.462/11- pode ser menos relevante do que aquela que deverão enfrentar os membros do Judiciário nos tribunais inferiores e nas varas singulares, quando diante da análise da legalidade de cada um dos pagamentos públicos cuja apreciação lhes for exigida.
A decisão sobre a constitucionalidade do RDC, ainda que tenha seus efeitos diretos nos regimes de contratação, não me parece, por dois motivos principais, ser o cerne do problema.
Primeiro, porque a nossa Suprema Corte tem dado respostas rápidas e democráticas, a partir de um debate plural e diante da ótica da Constituição, que é muito obtusa.
Segundo, porque, embora uma lei originada de medida provisória possa dizer o contrário, é impossível afastar o controle jurisdicional das contas públicas -para tal fim, há variados instrumentos disponíveis. O art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal deixa isso bastante claro.
O problema real é que, em um Estado famoso pela impunidade, especialmente naquilo que diz respeito aos crimes contra o erário (quer na aplicação de penas, quer na quase nula recuperação do dinheiro desviado a particulares), a intervenção jurisdicional nas obras públicas somente é eficaz em sua modalidade anterior ao desembolso integral, em que a eventual anulação do procedimento licitatório irregular é uma opção importante, porém não única.
Em outras palavras, o efeito colateral inevitável do único remédio judicial eficaz contra possível desvio de recursos é a suspensão do pagamento, que importa em paralisação de obra.
Mas a paralisação implica em passagem de tempo. Esse tempo que, em se tratando da Copa do Mundo de 2014, tem-se apresentado mais escasso do que o dinheiro público.
Então, o fator emergência, que já tradicionalmente é invocado para se cometerem injustiças, transforma-se em fator criminógeno; seria ingênuo imaginar que corruptos e corruptores não estejam, neste momento, a calcular o quanto a tal "emergência" lhes renderá em números concretos.
Eles sabem que a pressa na execução dos trabalhos visando aos dois grandes eventos esportivos, amplamente disseminada na opinião pública, opõe-se frontalmente à resistência inerente a qualquer intervenção judicial e, assim, sopra a favor do aumento indiscriminado de custos.
Se é verdade que o STF tem estrutura para suportar pressão dessa espécie, o mesmo não se poderá dizer, no futuro, a respeito dos tribunais inferiores, quando frente a casos concretos, e a dias contados da inauguração de nossas vitrines para o mundo.
O efeito, portanto, pode ser reverso: quando decidida sob a velada coação da impossibilidade real de paralisação de uma obra pública, a ação judicial originada para estancar uma despesa imoral acaba por se transformar em seu mais eficaz e talvez conveniente instrumento homologatório.
A urgência, como argumento, sairá mais cara do que a dispensa parcial das licitações.
*VÍCTOR GABRIEL RODRÍGUEZ é professor doutor do Departamento de Direito Público da Universidade de São Paulo (Faculdade de Direito de Ribeirão Preto)
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