O passado cobra
MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 09/09/11
Além do próprio Dirceu, que, reafirmado pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, como o "chefe da quadrilha", aparece no meio de confusões políticas, o caso mais exemplar de tentativa de recuperação de imagem que deu errado é o do deputado federal João Paulo Cunha.
Nas suas alegações finais, o Gurgel chama a atenção para o fato de que Dirceu continua exercendo forte poder político no PT, e a exposição de seus encontros reservados com ministros e parlamentares, em um quarto de hotel de Brasília, explicita esse poder que torna factível a posição de "chefe da quadrilha".
Já a indicação de João Paulo Cunha para presidir a comissão especial do novo Código Civil escandalizou a opinião pública e provocou constrangimentos no ministro do Supremo Luiz Fux, um dos que vão julgá-lo. Ele e o deputado Eduardo Cunha, que seria o relator da comissão, tiveram que ser vetados pela reação negativa que suas indicações provocaram.
Também os escândalos em que está metido o cacique do PR Valdemar Costa Neto mostram que os envolvidos no caso do mensalão não perderam o vício.
As alegações finais de alguns envolvidos também trouxeram à tona momentos históricos que poderiam ter sido decisivos, como o depoimento do publicitário Duda Mendonça na CPI dos Correios, reafirmado agora ao STF.
Naquela ocasião, o marqueteiro da campanha presidencial de Lula em 2002 admitiu que recebeu pagamento do tesoureiro Delúbio Soares em contas no exterior, o que caracterizava no mínimo o uso de caixa dois na campanha presidencial.
O relator da CPI dos Correios, deputado Osmar Serraglio, definiu a certa altura do depoimento do publicitário Duda Mendonça o núcleo do que estava em jogo: o fato de parte da campanha eleitoral de 2002 ter sido financiada por dinheiro ilegal colocaria em xeque a legalidade de várias eleições, inclusive a do próprio presidente Lula e, mais que isso, a higidez de nosso sistema democrático.
A revelação de que o pagamento do equivalente a cerca de R$10 milhões fora feito no exterior para uma empresa de Duda Mendonça, com dinheiro saído de contas de vários bancos pelo mundo, provocou choro e ranger de dentes entre os petistas, e muitos deles foram ao púlpito da Câmara e do Senado para pedir desculpas ao povo brasileiro.
Estava criado naquele momento um clima propício ao pedido de impeachment de Lula, que só não aconteceu porque houve muitas negociações nos bastidores.
Sabe-se hoje que dois dos principais ministros na ocasião, Antonio Palocci e Marcio Thomaz Bastos, foram ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso propor um acordo: a oposição não pediria o impeachment de Lula, e este se comprometeria a não se candidatar à reeleição.
A decisão política da oposição não se deveu apenas a essa proposta, que não chegou a ser fechada num acordo político consequente, mas também pela avaliação equivocada de que Lula estava ferido de morte e não conseguiria se reeleger de qualquer forma.
Houve também quem temesse a reação dos chamados "movimentos sociais" em defesa do mandato de Lula. O resto é história, que deu a Lula a chance de se recuperar politicamente e nem mesmo aparecer entre os acusados do mensalão.
O principal acusador do esquema, o ex-deputado Roberto Jefferson, que também continua tendo poderes no PTB mesmo cassado, na ocasião sempre fez questão de afirmar que Lula não sabia de nada e chegou a recomendar que Dirceu pedisse demissão da chefia do Casa Civil "para não envolver um homem de bem", referindo-se ao presidente Lula.
Talvez arrependido de ter blindado Lula na ocasião, ou apenas para tumultuar o processo, Jefferson questiona nas alegações finais o fato de o procurador-geral da República ter deixado de denunciar o presidente da República. "Qual a razão de o ilustre acusador ter deixado de denunciar aquele que, por força de disposição constitucional, é o único que no âmbito do Poder Executivo tem iniciativa legislativa, o presidente da República, para somente acusar três de seus auxiliares, ministros de Estado, que iniciativa para propor projetos de lei não têm?"
Também o publicitário Marcos Valério, cérebro da operação financeira do mensalão, tenta colocar Lula no processo. Afirma a certa altura, seu advogado, nas alegações finais: "É raríssimo caso de versão acusatória de crime em que o operador do intermediário aparece como a pessoa mais importante da narrativa, ficando mandantes e beneficiários em segundo plano, alguns, inclusive, de fora da imputação, embora mencionados na narrativa, como o próprio ex-presidente Lula."
Dificilmente o pedido será aceito, pois no processo original não existe qualquer referência a Lula, embora, na mesma situação, o ex-governador mineiro, hoje deputado federal, Eduardo Azeredo tenha sido incluído pelo próprio Supremo, e pelo mesmo relator, o ministro Joaquim Barbosa, como coautor do chamado "mensalão mineiro"
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