Uma 'vacina' contra o câncer
FERNANDO REINACH
O Estado de S.Paulo - 15/09/11
Desde meados do século 20, quando as vacinas se tornaram uma das armas mais poderosas da medicina, os oncologistas invejam os imunologistas. Não seria fantástico se a capacidade do sistema imunológico de identificar, perseguir e exterminar bactérias e vírus pudesse ser usado para combater células cancerosas?
Apesar da inveja velada, oncologistas e imunologistas passaram os últimos 50 anos colaborando para dirigir o canhão do sistema imunológico contra as células cancerosas. Alguns sucessos, como anticorpos monoclonais capazes de matar células tumorais, foram adicionados ao armamento dos oncologistas, mas até agora não havia sido possível convencer o sistema imunológico a se voltar de modo eficiente contra as células tumorais. Parece que isso vai mudar.
A base do sistema imunológico é sua capacidade de distinguir o que faz parte do nosso corpo (self) do que não faz (non-self) e destruir esses últimos. Quando o sistema imunológico detecta o vírus da gripe, ele "decide" que o vírus não faz parte do "self"e monta um ataque sistemático. Ficamos com febre, os gânglios onde as células do sistema imunológico se dividem incham e após alguns dias o sistema imunológico ataca e destrói o vírus.
O sistema é tão potente que é importante ele não errar, mas quando ele se engana e ataca uma parte do self, provoca doenças autoimunes. O problema que aflige oncologistas e imunologistas é que nosso sistema imunológico, quando detecta uma célula de nosso corpo que sofreu uma ou mais mutações e se transformou em uma célula tumoral, a classifica corretamente como self e não ataca. A célula tumoral continua a se dividir impunemente e o câncer pode se espalhar.
Nas últimas décadas, o mecanismo usado pelo sistema imune para fazer essa classificação foi elucidado. Ele reside em grande parte nos linfócitos T, mais especificamente nos receptores na superfície desses linfócitos. Usando técnicas de engenharia genéticas, imunologistas e oncologistas vêm modificando esses receptores de modo a forçar os linfócitos T a atacar células de tumores. Mas até agora essas células modificadas, quando injetadas nos pacientes, não se dividiam rapidamente e não duravam o suficiente para erradicar o tumor. Agora, parece que os cientistas conseguiram modificar essas células de modo que elas exterminem o tumor.
Nos últimos meses, essa nova estratégia foi testada em três pacientes. Os pacientes sofriam de uma forma avançada de leucemia resistente a todos os tratamentos quimioterápicos. Eles foram internados e amostras de seus linfócitos T foram isoladas. Esses linfócitos foram cultivados fora do corpo durante dez dias. Nesse tempo, foram infectados com um vírus modificado capaz de colocar no genoma dos linfócitos T do paciente uma versão alterada de seus receptores.
Esses receptores haviam sido modificados para garantir que os linfócitos reconhecessem as células cancerosas e que pudessem se multiplicar rapidamente e atacar o tumor. No décimo dia, um pequeno número desses linfócitos transgênicos foi injetados no sangue dos pacientes.
Resultado inesperado. Por uma semana, nada aconteceu, mas em seguida os pacientes começaram a ter febre e outros indícios de que uma resposta imunológica estava ocorrendo. Ela foi tão forte e rápida que os médicos tiveram dificuldade de controlá-la. Após duas semanas, foi possível verificar que os linfócitos T não somente haviam reconhecido o tumor, mas haviam se dividido rapidamente e destruído as células tumorais.
Os cientistas estimam que o sistema imunológico dizimou quase 1 quilo de células tumorais em cada paciente em poucos dias. Os cientistas, que esperavam um sucesso parcial, ficaram espantados: em dois dos três pacientes, nenhuma célula tumoral sobreviveu. E seis meses após o tratamento, eles continuam livres da leucemia.
O mais interessante é que os linfócitos T capazes de combater a leucemia colonizaram os órgãos do sistema imune e permanecem no corpo desses pacientes. Provavelmente eles atacarão novamente se surgirem novas células tumorais. Esses pacientes parecem estar "vacinados" contra este tipo específico de tumor.
Esse resultado mostra que temos tecnologias capazes de manipular o sistema imune de modo a dirigir seu poder de destruição contra o alvo de nossa preferencia. Mas, apesar deste sucesso, nem tudo são flores. Um dos três pacientes não foi curado completamente e nos três, ao matar as células tumorais, os linfócitos T modificados mataram também outras células que possuíam o marcador usado para identificar as células tumorais. E é preciso esperar um tempo mais longo que os seis meses decorridos para saber se a cura foi definitiva.
Nos próximos anos, saberemos se esse procedimento pode ser usado em diferentes tipos de tumor. E teremos uma ideia melhor de sua eficiência quando ele for testado em um número maior de pacientes, em diversos centros.
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