Dar: o dilema
MARCELO RUBENS PAIVA
O Estado de S.Paulo - 27/08/11
Peço desculpas ao leitor. Pensei muitas vezes no verbo a ser utilizado no relato abaixo. "Ceder" seria menos ofensivo. Mas "dar" foi exaustivamente utilizado pelas personagens em questão. É com ele que elas costumam pontuar suas aventuras e seus segredos.
Numa mesa de bar com três mulheres: uma carioca, uma mineira e uma paulista. Na faixa dos 30 anos. Profissionais liberais, que moram sozinhas, donas de si. Rodadas. Com alguns matrimônios interrompidos nas costas.
A mineira teorizou. Se você sai com um carinha três vezes, terá que dar na quarta. Seria uma afronta às regras da corte. Afinal, há uma ética no jogo da sedução.
Ela aprendeu com a mãe que é sempre vantajoso para o espelho ter uma legião de admiradores. Mulheres adoram ser paparicadas, lembrou. Se rolar a quarta vez, seu papel de diva a obrigará a ceder aos óbvios interesses masculinos. Se não, perde-se o trono. E, para o horror das mulheres, a maior heresia: será malvista.
A paulista contou. Que no começo do ano saiu com um cara, mas não ficou tão a fim. Não rolou nada. Ele insistiu para que houvesse um outro encontro. Ela dispensou com carinho e educação. Porque sabia que, se desse, ele poderia se apaixonar, e ela não conseguiria encarar tamanho paradoxo. Então, quebrou o encanto já na raiz.
A carioca contou. Que tem filhos, ex-maridos, dois empregos, o que filtra consideravelmente o assédio, para o bem. Se depois de todas as informações, o carinha continua a saga da conquista e ultrapassa as etapas da prova, ela dá. Afinal, um cara como esse merece consideração.
E ela não se preocupará com o grau de paixão do admirador, pois os filhos, os ex-maridos e os dois empregos já trarão muito trabalho pela frente, e será natural o termômetro do amor cair ao nível baixo. Ela dará e se esquecerá naturalmente. E esperará que ele também siga por outra trilha.
As três falavam sem parar o que para elas seguia uma lógica incontestável, comum, apesar do UF de seus documentos serem distintos. Cigarros e mais chopes contribuíam para a enumeração das convicções femininas. Contavam casos esdrúxulos com carinhas sem noção, experiências fracassadas, xavecos tolos, excessos improdutivos.
Enquanto eu, pasmo, só acompanhava em silêncio, com muita pena da minha categoria, dos meus camaradinhas, aprisionada pelas garras da lógica feminina, perdida num mar sem vento. Até a carioca contar a sua última bizarrice:
Foi muito cortejada por um músico que não se dispensa. Daqueles que manipulam as palavras e ideias com capricho, para obter o suspiro incontrolável de uma garota carente, viciada em elogios doces e pensamentos bem encaixados.
Carinha com um tremendo prestígio no meio, idealista, que milita em causas justas. Que se educou no exterior. Cuja produção é sempre bem recebida, premiada, elogiada, invejada. E que fala da alma da mulher, consegue penetrar no desconhecido, seduzir e encantar.
Ela saiu com ele duas vezes. Descobriu, como ela descreveu, que era meio "afeminado", termo incorreto que só utilizamos quando o grau de álcool no sangue beira o nível de ser repreendido numa blitz da Lei Seca. O que foi uma surpresa, já que o currículo do carinha era digno de matéria de capa da revista Vogue. Aliás, ilustrada por algumas de suas conquistas.
Apesar de não corresponder aos elementos da paixão, nem de estar tanto a fim, acabou vencida pela curiosidade. Foi a um motel com o músico-poeta, quando, não mais que de repente, o sangue dele parou de fluir nos dutos do desejo, impedindo a vascularização das veias dorsais e da artéria profunda do seu membro.
O prepúcio não se deslocava, nem a glande se expunha, levando pânico ao córtex cerebral dele, induzindo a uma infeliz, incontestável e categórica broxada!
Dilema da minha amiga. Mesmo não querendo, refletiu diante do fracasso, terei que sair com ele outra vez, não poderei deixar uma mácula no seu inconsciente, sua produção artística será afetada, decairá, seu talento passará a ser questionado, o mercado o considerará o artista promissor que, de repente, do nada, perdeu o eixo.
Ela saiu com ele de novo. Quase por obrigação. Foram ao mesmo motel. Escolheram o mesmo quarto e, no mesmo ambiente, repetiram a coreografia da cobiça. Dessa vez, o chamado corpo cavernoso, ou esponjoso, foi preenchido devidamente pelo pulsar e sangue do macho. Rolou. Ele cumpriu o seu papel. Ela, idem, e disse um penoso adeus, convicta de que a arte não imita a vida.
Neste momento, elas pararam de falar e me olharam indignadas com o meu "não acredito!" Pediram explicações diante da minha exclamação. Queriam minha opinião a respeito do que acabara de ouvir.
Eu disse, sem pestanejar: "Como vocês racionalizam o sexo! Sempre têm explicações, motivos extras. Não é tesão que comanda? Não basta se sentir atraída, ir lá e, como vocês dizem, dar?"
Se seguiu aquele blablablá sonolento das diferenças de gênero, que uma mulher tem que ceder, um homem, apenas penetrar, que uma mulher tem que se abrir, um homem, introduzir, e por aí foi, o mesmo de sempre, apesar de vivermos numa nova era, de a emancipação comandar grandes transformações.
As revoluções não mudaram as explícitas diferenças entre querer e poder. Aliás, qual homem já não escutou "quero, mas não posso", e, em seguida, a promessa de quem sabe numa outra ocasião?
Quantos questionamentos, indecisões, cálculos. O amanhã é muito mais importante para as mulheres do que para nós, machos ligados no aqui e já. Ainda bem que existe a diferença. Se não, esta aliança não teria tanta graça.
Narrei a conversa para uma campineira esclarecida, estudante de filosofia da Unicamp, lésbica, conhecedora do gênero; já foi casada com outra garota.
"Ah, mulher é tão maternal...", justificou. E contou que estava numa festinha de universitários esclarecidos de Barão Geraldo, louca para fumar um baseado. Descobriu que um carinha tinha. Foram até o carro dele, cometer o ato ilícito. No caminho, ela pensava, "terei que dar". Seria uma troca de gentilezas. E foi o que aconteceu. Mulheres...
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