A pia da cozinha
MONICA B. DE BOLLE
O ESTADÃO - 01/07/11
Em inglês, o título deste artigo expressa um estado geral de confusão e desordem. Como tantas outras expressões na língua do Bardo, a metáfora é gloriosamente visual. Pilhas de pratos, copos, talheres, panelas, utensílios culinários em geral, alguns com um pouco de água e sabão, outros ainda com restos de comida e manchas de gordura. A imagem caracteriza o estado atual do debate sobre o nível das taxas de juros no Brasil.
O jornal Valor Econômico publicou, nas últimas duas semanas, uma série de artigos de economistas de variadas linhas de pensamento sobre o espinhoso tema das taxas de juros brasileiras. Como era esperado - dada a complexidade do tema -, as controvérsias foram muitas. Vários apontaram, direta ou indiretamente, a insuficiência da poupança no País como uma das causas para a anomalia dos juros "excessivamente altos". Outros tacharam o argumento de "simplista", mas não propuseram um diagnóstico alternativo, seja por não quererem ser acusados de também possuir a suposta arrogância intelectual que acomete os economistas, seja por ser sempre mais fácil refutar os argumentos dos outros do que propor alternativas. Alguns se limitaram a analisar a conjuntura atual e, em certos casos, enaltecer o desordenado debate sobre os "novos instrumentos" de política econômica - as tais das medidas macroprudenciais -, que simplesmente resgatou da pia da cozinha utensílios gastos e encruados de detritos, conferindo-lhes novo polimento com um nome rebuscado. Um Bombril sofisticado, de 1.001 utilidades.
É evidente que a insuficiência da poupança, por si, não pode explicar a peculiaridade dos juros do País, como reconhecem os próprios proponentes do argumento em suas diversas matizes. Não há dúvida de que o brasileiro é perdulário, mas há no mundo muitos exemplos de esbanjadores cujas taxas de juros são relativamente "normais". Os EUA pré-crise, por exemplo. Ou o México, a Colômbia, o Peru, que têm taxa de poupança perto de 20% do PIB e déficit fiscal de 2% - nada muito distante da realidade brasileira, onde a poupança é de 18% do PIB e o déficit nominal, 2,3%. Qual seria, então, nossa "jabuticaba", parafraseando o título do artigo de André Lara Resende (Juros: equívoco ou jabuticaba?, Valor Econômico, 16/6)?
Eis uma hipótese: o governo brasileiro ainda não conseguiu se desvencilhar do "viés inflacionista" que caracteriza a condução da política econômica. Confrontado com a escolha entre preservar o crescimento ou combater a inflação, o governo continua tentando explorar um trade-off ardiloso, sobre o qual não tem controle. Nos 12 anos do regime de metas no Brasil, só conseguimos manter a inflação igual ou menor que o centro da meta em quatro ocasiões - uma delas em 2009, quando o mundo sentiu o brutal impacto do colapso financeiro de 2008. A manutenção de uma meta de inflação acima dos níveis que vigoram nos nossos pares emergentes e a aversão do governo a discutir seriamente as vantagens de um banco central independente são também reflexos desse impulso inflacionista nativo.
Mas o grande segredo é que não há segredo. Quando o governo tenta explorar o trade-off entre inflação e crescimento, as expectativas se ajustam desfavoravelmente, impedindo uma convergência mais rápida dos juros para os ditos "padrões internacionais". Os agentes econômicos se munem de estratégias defensivas que distorcem a alocação de recursos, geram uma poupança improdutiva, que não favorece a expansão do investimento de longo prazo. O quadro é piorado por essa jabuticaba gigantesca em que se transformou o BNDES, plenamente engajado na pérfida política de campeões nacionais.
Uma cozinha suja é um local desagradável. Malcheiroso, repleto de gordura incrustada, manchas entranhadas e superfícies pegajosas. Está na hora de tirar a macroeconomia da cozinha e remover, com um bom detergente, as crostas ideológicas desse falacioso embate entre a "ortodoxia" e a "heterodoxia"; é muito melhor refletir sobre os fascinantes dilemas macroeconômicos do Brasil na sala de estar. Sem se esquecer de limpar a cozinha, evidentemente.
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