segunda-feira, junho 20, 2011

LUIZ FELIPE PONDÉ - Marianne

Marianne
LUIZ FELIPE PONDÉ
FOLHA DE SÃO PAULO - 20/06/11


Seguindo o rastro da filosofia escandinava da angústia, deixando a Dinamarca e indo em direção à Suécia, encontro a atmosfera do grande cineasta Ingmar Bergman (1918-2007) em sua ilha de Faro.

Paisagem desolada e fria, cenário de alguns dos seus grandes filmes, Faro é o mundo ideal para a geografia bergmaniana da alma, geografia esta que fala das experiências do abandono, do amor traído, da tortura causada por um Deus silencioso, e do pavor do nada que nos habita dissolvendo nossas esperanças.


Entre os seus filmes rodados em Faro, um -para o qual ele "apenas" fez o roteiro e Liv Ullmann, uma de suas esposas e maiores atrizes, dirigiu- é excepcionalmente contundente. "Infiel", feito em 2000, é uma pérola da tradição dos filmes sobre o amor que devasta a vida com a força de uma tempestade vulcânica.

A estética bergmaniana da devastação da alma pelo afeto se realiza no filme não só pela presença de sua repetida insistência em expor nossos maiores demônios mas também pela delicadeza no tratamento de um desses demônios, a paixão imprevista, que assola nossa vida e a destrói, esmagando-a sob o peso da irresistível beleza do amor romântico.

Marianne é uma bela atriz, casada com o bem-sucedido maestro Markus. O casamento deles é muito feliz, com amor, uma filha linda e doce, e sexo em abundância, dados importantes para excluirmos o senso comum que crê que a infidelidade por paixão só assola casamentos já arruinados.

Se assim fosse, casais que se amam estariam a salvo, e a infidelidade por paixão romântica não seria uma tragédia, mas sim uma ciência matemática e, portanto, previsível.

O terceiro elemento é David (o amante), diretor de teatro, amigo íntimo do casal, que carrega elementos autobiográficos do próprio Bergman (sua crueldade com as mulheres, seu caráter furioso, sua insegurança afetiva, sua tendência autodestrutiva).

O triângulo repete a "receita" medieval clássica de destruição da vida pela paixão amorosa: a mulher que se apaixona perdidamente pelo melhor amigo do marido.

Tudo começa por acaso. Marianne e David se viam como irmãos. Uma noite, dormindo na mesma cama, já que se viam como irmãos (não vou entrar em detalhes de por que dormem nessa ocasião na mesma cama), Marianne desperta no meio da noite e "o vê pela primeira vez", enquanto ele dorme.

Na sequência, eles se encontram numa galeria de arte, e num beijo impulsivo, a vida deles, do amigo e marido dela, Markus, e da pequena filha, Isabella, mergulha no abismo. A cegueira é de fato a melhor metáfora sensorial para o amor que os enlaçará num destino impiedoso, mas belo.

Como diz o maravilhoso escritor francês Bernanos, "o acaso é feito à nossa semelhança". O sentido dado pelos medievais à paixão romântica é exatamente este: uma doença que nos acomete ao acaso e nos deixa obcecado pela beleza do ser amado, levando-nos à destruição.

A paixão se impõe por sua própria natureza deliciosa e por isso mesmo impiedosa, e não porque ela signifique algo além de si mesma. Quem busca na doença do amor algo além dele mesmo vaga por uma casa vazia. O roteiro de Bergman e a direção de Liv Ullmann capturam exatamente essa falta de sentido da paixão romântica, a não ser a própria escravidão maravilhosa a ela.

Marianne, contra si mesma, perde o controle da própria vida e arrasta consigo "um mundo inteiro".

Sua vida, antes bela e bem disposta entre os elementos que ordenam o cotidiano (amor, sexo, trabalho feliz e bem-sucedido, bens materiais abundantes, mas não excessivos, desenhando o equilíbrio entre desejos e necessidades visíveis), é destroçada contra sua crescente dependência da presença física de David em seu cotidiano, dissolvendo a ordem bela que dispunha sua vida para a felicidade e harmonia entre seus desejos e necessidades invisíveis.

Quanto maior o amor, maior a indiferença para com suas vítimas. Num momento de grande agonia, descrevendo o que sente, Marianne diz que "David cresce dentro dela e de sua vida como um tumor que tudo invade".

Que Deus nos proteja do amor.

Um comentário:

Anônimo disse...

Jamais poderia concordar com suas palavras, pois aqui se trata de traição. Abandono de principio estruturador da vida.
Sem negar a força da paixar e do desejo, aqui se trata na minha opinião de fraquesa humana em não conhecer seus sentimentos.
Como podemos dormir com um homem estranho e pensar que ele é "como irmão", isso é cegueira. E por isso quando Marianne acorda no meio da noite vê o homem pela primeira vez, finalmente ela o encherga e encherga a atação sexual e a temptanção.
Em vez de entender a temptação, se concientizar do "encontro" com o masculino desconhecido, ela se etrega diretamente a paixão e sexo. E assim perde a tensão para descubrir o que está atras.
O que eu não entendo mais de tudo é chamar o casamento de Marianne com Markos - casamento feliz, enquanto ele trai ela com uma mulher durante 20 anos.
Ele trai si proprio, constantemente, sem piedade. Vivendo uma vida de fachada e sem alma. Uma parte totalmente dissociada dele vive numa vila grande com quadros decadentes sozinha em isolamento e abandono.
O Markus, não consegue expressar seu amor e sim somente seu poder.
Isso condena ele a um vazio e a morte.
Que Deus ensine nós a amar.