Secularismo no resgate da primavera árabe
FADI HAKURA
FOLHA DE SÃO PAULO - 03/06/11
Os governos locais não devem privilegiar uma religião em relação a outras, nem derivar seus planos de ação política de fonte religiosa em particular
A primavera chegou cedo este ano no mundo árabe. A mudança climática despertou o Oriente Médio, antes comatoso, do torpor de lideranças singulares. Uma nova aurora de democracia e liberdade está surgindo, do Marrocos a Omã. Ou, pelo menos, é isso que nos é dito.
Fazer previsões meteorológicas é um negócio arriscado. Projeções futuras podem ser tremendamente imprecisas. A despeito dos modelos sofisticados e das imagens obtidas por satélites, o deciframento de padrões meteorológicos é uma ciência inexata. Adivinhar o futuro no Oriente Médio é uma miragem não menos ilusória no calor sufocante do deserto arábico.
O pluralismo democrático nunca é uma conclusão dada de antemão.
Contestações da velha ordem não podem garantir resultados lineares. Embora Mubarak tenha virado passado no Egito, o mesmo certamente não se deu com o aparato de Estado que ele construiu. O tribalismo iemenita e líbio não vai desaparecer com uma mudança de regime.
O sectarismo sunita-xiita continuará a ser uma característica que define o Bahrein, o Iraque e o Líbano. Minorias religiosas continuarão a se ressentir da governança de partidos islâmicos, moderados ou não.
O facciosismo vai continuar a dividir a unidade palestina.
A história nos ensina que eleições livres e justas não vão, por si sós, curar as divisões acirradas presentes nas sociedades árabes. Na realidade, é provável que as exacerbem. Destituídos de sentimentos de solidariedade nacional, os interesses sectários estreitos poderão ditar padrões de voto. Está faltando uma peça crucial do quebra-cabeça.
Sem ela, os países árabes possuirão a estrutura externa da democracia, mas não instituições representativas genuínas. Essa peça crucial que falta é o secularismo, um princípio que cinge as democracias mais vibrantes -a crença na ideia de que o Estado deve existir separadamente da religião ou das crenças religiosas.
Os governos não devem privilegiar uma religião em relação a outras, nem derivar seus planos de ação política de nenhuma fonte religiosa em particular. Devem ser equidistantes de todas as religiões -ou seja, concretamente, devem ignorar as persuasões religiosas das pessoas.
Os árabes confundem secularismo com ateísmo e o interpretam como ausência de religião, em vez de liberdade religiosa. Mais danosa ainda é a vinculação do secularismo com regimes passados no Egito e na Tunísia, conhecidos por terem refreado movimentos islâmicos.
No momento em que estuda uma nova Constituição, o Egito está debatendo o papel da religião na sociedade. O artigo 2º da Constituição atual, de 1980, define o islã como a religião nacional e "fonte principal" das leis. Enquanto os cristãos coptas pedem que seja revogado, a opinião muçulmana, maioria avassaladora, é favorável a sua manutenção. Os coptas veem esse artigo como excludente e divisório.
O Centro Pew de Pesquisas oferece evidências fartas dos benefícios da separação entre religião e Estado. Em pesquisa de 2009, mostrou que as democracias seculares liberais exibem as menores restrições governamentais e hostilidade pública contra religiões minoritárias.
Quer o secularismo seja flexível, quer não, alimentá-lo no mundo árabe é um desafio difícil. A democracia secular requer transformação de culturas e mentalidades.
Não será fácil, nem mesmo nos melhores dos tempos. Mas é o único ideal que pode impedir a chegada de um inverno árabe inclemente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário