Mais um portento
J. R. GUZZO
REVISTA VEJA
No meio de todo o ruído levantado nesses últimos tempos para saudar a subida da classe “C”, ou o aparecimento da nova “classe média”, a verdade é que pouco se ouve falar de um fenômeno ainda mais interessante - o surgimento de algo que se poderia descrever como a classe “AAA”. Ela não é mencionada na propaganda oficial; ao contrário, sua existência é um constrangimento nas áreas ligadas ao poder público. Também não tem despertado a menção dos analistas políticos, mais preocupados, ultimamente, em descobrir se os emergentes são lulistas, dilmistas ou neoconservadores. Essa nova classe, enfim, parece não ter atraído até agora o interesse dos departamentos de marketing de empresas em busca de consumidores de bolso cheio - ou, se já atraiu, ninguém está disposto a ficar falando disso. Numa pátria-mãe menos distraída do que o Brasil de hoje, porém, a classe AAA provavelmente despenaria um pouco mais de curiosidade. Ela é formada por gente que, de uma forma ou de outra, prospera recebendo dinheiro do governo, inclusive por meios lícitos - e aí estamos falando de cada vez mais gente, cada vez mais prosperidade e cada vez mais dinheiro, a ponto, talvez, de colocar este país diante de uma nova espécie de portento econômico.
Não se trata, no caso, de qualquer dinheiro público. Nada de povão por aqui - não entram na classe AAA, por exemplo, os brasileiros que vivem do Bolsa Família e de outras obras de caridade do governo. Também estão fora funcionários públicos de posição e remuneração modestas ou que, se ocupam cargos mais altos e têm salários melhores, trabalham de verdade, como qualquer cidadão comum. A população que habita esse mundo é formada por todos os que têm a ventura, hoje em dia, de vender algo ao governo, especialmente quando vendem caro e, melhor ainda, quando conseguem vender sem entregar. A seu lado, subindo de vida dentro do mesmo pesqueiro, estão os que não vendem mas recebem - o caso clássico é o dos controladores de ONGs que, através dos seus amigos dentro do governo, e dos amigos dos amigos, recebem doações do Erário para realizar tarefas vagas, isentas de prestação de contas ou simplesmente inexistentes. Estão nessa classe emergente, também, os milhares de companheiros presenteados com cargos na máquina pública e na constelação de altos empregos que se espalha em torno dela - conselhos de empresas estatais, autarquias, diretorias de fundos de pensão, institutos disso, secretarias daquilo. Há todo um meio de campo, com fronteiras mal definidas, cada vez maior e cada vez mais caro, de intermediários entre o poder público e as empresas privadas que fazem negócios com ele. Completam o bloco, enfim, os beneficiários da corrupção pura e simples - os que sempre trabalharam no ramo e uma aguerrida turma de novos talentos. É gente que gasta depressa, consome muito e, frequentemente, paga em dinheiro vivo - da mesma forma, aliás, como recebe.
Nunca houve tanto dinheiro em circulação nesse mercado - cerca de 1 trilhão de dólares em 2011, 1 belo e redondo trilhão, levando-se em conta que o governo, o grande cliente, representa cerca de 40% do PIB nacional, que deve fechar o ano com um total aproximado de 2,5 trilhões de dólares. O cofre está aberto para os mais variados tipos de transação. Podem-se vender estádios de futebol, aeroportos e trens-bala - ou trens não-bala, que, por sua vez, tanto podem ir na direção norte-sul como na leste-oeste. Também há, nesse mar de oportunidades, a chance de negociar instalações para uma Olimpíada inteira, serviços terceirizados de mão de obra e campanhas de publicidade informando ao público que o Brasil é de todos. É possível receber dinheiro do Erário em troca de usinas hidrelétricas, organização de festas juninas e recitais de poesia. Há excelentes perspectivas, na área judicial, para arrancar indenizações do Tesouro Nacional - e por ai segue a procissão. Ela passeia pelo país inteiro, mas é Brasília, obviamente, a sua cidade predileta - nada mais natural que a renda per capita na capital esteja a caminho dos 30000 dólares anuais, cerca de três vezes a média nacional. É o progresso.
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Acabamos de ficar sabendo, com base no último censo do IBGE, que há exatamente 16267197 miseráveis no Brasil de hoje; são os cidadãos com renda mensal de até 70 reais. É uma boa notícia e, ao mesmo tempo, um mistério. A boa notícia é que eles são apenas 8,5% da população total. O mistério é saber como alguém consegue ganhar 71 reais por mês, por exemplo, e não viver na miséria.
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