Diversidade, afeto e língua afiada: somos cronistas do 'Caderno 2'
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
O ESTADO DE SÃO PAULO - 06/04/11
Conto em palestras para estudantes, repito agora aos leitores. Talvez não saibam que, entre nós, a crônica é chamada literatura sob pressão. Precisamos escrevê-la, temos prazo, buscamos o tema. Ou, se preferirem, a tal inspiração. Cada um tem a sua, mas não conheço definição melhor do que a do Luis Fernando Verissimo: "Inspiração? É o prazo". Ou seja, chegou a hora, temos de escrever e escrevemos. Moro neste Caderno há 12 anos, pelas minhas contas. Antes, saía no Cidades (hoje Metrópole). Mas meus textos têm mais o jeito e a cara do Caderno 2, onde convivo com alguns dos melhores cronistas deste País. Não há dois iguais entre nós, a diversidade nos marca, a variação de assuntos, os campos vividos e explorados. Neste grupo, encontra-se divertimento e também informação, esclarecimento, questionamento, opinião, briga, poesia, o que se precisar. Daí sermos um conjunto compacto.
O que me emociona é lembrar que, quando adolescente, comprava a revista O Cruzeiro para ler a última página, escrita por Rachel de Queiroz. Passadas décadas, quem foi minha companheira de Caderno 2? Rachel de Queiroz. Quando morreu, o espaço dela ficou para mim, às sextas-feiras, o que mostra o encanto dos caminhos da vida. A morte levou outros, como Paulo Francis, cuja ironia, mordacidade, metralhadora giratória (como diziam) o faziam ser um jornalista amado/odiado. Polemizava, provocava e, infelizmente, não teve sucessor à altura em toda a imprensa. Cedo, muito cedo, se foi Caio Fernando Abreu, cuja maneira de escrever e ver a vida era singular, tanto que seus textos, repetidos ou entrando em antologias, conservam um frescor espantoso; Caio foi visionário. Teve quem não morreu, continua vivo, mas preferiu deixar a pressão de prazos, temas e inspirações e se retirou para Florianópolis. Mario Prata fica lá, publica seus livros, escreveu outro romance, mas a crônica perdeu aquele humor sutil do Pratinha. Que muitas vezes era escrachado. Assim como deixou a crônica, Prata também abdicou da cerveja com álcool.
Tem gente como João Ubaldo Ribeiro, a quem já acompanhei em turnês literárias, falando para estudantes pelo Brasil e pelo estrangeiro. Estive com ele na Alemanha, nos Estados Unidos e também em Itaparica, sua terra, onde é ícone e onde prepara moquecas de ostrinhas, perfumadas, ao redor das quais passamos o dia. João é daqueles que escrevem como falam, um contador de histórias, cujas crônicas, eventualmente, se transformam em contos.
Chegou um dia em que alguns dividiram a casa e cederam espaço para um companheiro que nos alegra. Cedi uma sexta-feira ao Milton Hatoum e a vantagem é que não preciso mais esperar um livro novo dele para ler um homem que tem estilo. Já Matthew Shirts e, claro, o professor Tota, constante nos textos dele, tanto que muitos não sabem se é verdadeiro, se ficção, ou uma espécie de amigo invisível, bem, o Shirts dividiu o pedaço com Lúcia Guimarães, que nos esclarece sobre os Estados Unidos. Assim, uma brasileira fala sobre americanos e um americano fala sobre brasileiros. Este é o verdadeiro vice-versa.
Terça-feira encontramos o best-seller Arnaldo Jabor. Ele é lido no jornal, lido em livros, ouvido na rádio, visto na televisão. Isso é o que se chama multimídia, estar em todas. Jabor detonou o Lula deixando-o nu durante todo o seu reinado. Lula foi rei ou imperador? Ou Deus? Jabor dilacera, destroça, não queiram ser seu inimigo. Seus momentos de ternura e afeto surgem quando ele fala de amor, sexo, de sua juventude ou infância, e aí nele encontramos o que se passou também conosco.
Às quartas-feiras (este continuou semanal) o Roberto DaMatta explica o Brasil e o homem. É um acadêmico diferenciado, porque suas crônicas são claras, acessíveis, sem jargão além do universo comum. Não é o chato de universidade. Desce do Olimpo e fala de futebol, carnaval, cachaça, o que quiser, colocando sustância, sem o B, como se diz no interior.
Espero a quinta-feira por causa do Verissimo, que volta aos domingos. Ele, em vez de dividir com alguém, ganhou mais um dia. Ninguém reclama. Se um é pouco, dois é bom. Num dia fala de política nacional e internacional, zombeteiro às vezes, maldoso, rápido no gatilho. Aos domingos suas historinhas e seus quadrinhos têm o sabor de Dalton Trevisan, Raymond Carver ou William Saroyan, podem ser kafkianos, ou machadianos. Ninguém é Verissimo impunemente.
Já Marcelo Rubens Paiva flutua entre a melancolia e a ironia, seus detalhes nos atingem certeiros. Transita entre o amargor, o cinismo, a crítica ácida, o afeto pelos seres humanos, as indagações sem respostas, ilumina o absurdo da vida. Sem esquecer Nelsinho Motta que de música brasileira sabe tudo, que também contava histórias com sabor, é engraçado, vai aos bastidores e traz revelações, tudo isso em curto espaço, diz o essencial. O "caçula" do grupo é o Sérgio Telles, aos sábados. Ele traz os bastidores das artes, conta curiosidades, abre nossos olhos para fatos perdidos, faz ligações e junta as pontas. Sua cônica mais recente, a da "pequena macaca" de Degas, é primorosa para mostrar como as coisas eram vistas e como se transformam. E eu, cujo ouvido é nulo, que não decoro uma só letra e melodia, que me perco até entre os raios fulgidos e o lábaro que ostentas estrelado, socorro-me necessariamente desta pequena e valorosa equipe formada pela Claudia Assef, Patricia Palumbo, Roberto Muggiati, Lúcio Ribeiro e Gilberto Mendes, que me abrem as comportas do entendimento aos sábados.
Nos resta, aos domingos, Daniel Piza, cuja espaço é senhorial, enche quase toda a página. Não só pela compulsão de escrever, porque tudo o que viu, leu, ouviu, observou jorra, impossível de ser contido. Daniel vai ao ponto, é agudo no comentário, detona um livro que muita gente ama, mostrando por que e não se deixa engabelar pelo gosto comum, pelo Maria vai com as outras, pelos modismos. Tem vez que leio, com raiva - "por que ele é assim?" Depois, me acalmo e vejo que tinha razão. Ele não se deixa enganar pela superficialidade do CD, do DVD, do quadro, do momento político. Um ser necessário. Acho que percorri todos os caminhos desta gente que acima de tudo adora escrever, olhar o mundo, viver a vida, observar as pessoas, o cotidiano, tenta vislumbrar o futuro, se enraivece, ou abre os braços amigavelmente. Assim vejo um pouco de nós, os cronistas do Caderno2.
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