O fim da tolerância?
FOLHA DE SÃO PAULO - 01/03/11
VLADIMIR SAFATLE
Hoje, faz 261 dias que a Bélgica está sem governo. A incapacidade de gerir os conflitos entre flamengos e valões chegou a um ponto dificilmente imaginável em qualquer outro país. Esse seria, no entanto, um fato sem maior interesse para o resto do mundo se não fosse, na verdade, uma espécie de sintoma ampliado da regressão política que assola toda a Europa.
Sintoma que diz respeito à destruição social gerada atualmente pela noção de "identidade nacional".
No fundo, a crise belga é o resultado da crença de que duas identidades nacionais não podem ocupar o mesmo espaço. Uma colonizará a outra com sua língua, seus costumes, suas crenças.
Essa ideia está por trás, por exemplo, do crescimento espetacular do partido xenófobo francês Front National com seu discurso, digno da época das Cruzadas, de que a identidade francesa será destruída pela invasão árabe.
Há alguns dias, saiu uma pesquisa mostrando que sua candidata a presidente, Marine Le Pen, tinha 20% das intenções de voto para a eleição presidencial do ano que vem.
Tal relação paranoica à identidade nacional é ainda o motor do crescimento dos partidos de extrema-direita na Holanda, na Dinamarca, na Suíça, na Hungria, na Suécia, na Itália, entre tantos outros.
Talvez seria o caso de dizer que não conseguiremos nos livrar da guinada extremista enquanto não tivermos coragem de dizer que a era das identidades nacionais acabou. Não há como conservar a noção de identidade nacional sem recairmos na tendência de associar Estado, nação e povo.
Pois uma das maiores conquistas da modernidade foi compreender o Estado moderno como uma instituição que, por só reconhecer relações igualitárias e universalistas, não se submete às tendências comunitaristas que aparece toda vez que alguém levanta a voz para falar da identidade do povo francês, flamengo, brasileiro, judeu, árabe.
Podemos viver muito bem em países que aceitam a mutação constante de suas culturas e línguas e o caráter múltiplo de seus costumes.
Nos últimos dias, David Cameron, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, todos governantes em baixa de popularidade, procuraram fazer seus cidadãos esquecerem da crise econômica que assola seus países colocando na pauta do debate o "fim do multiculturalismo".
Contudo poderíamos dizer que o multiculturalismo fracassou por não ser suficientemente multicultural. Ele nunca conseguiu realmente integrar imigrantes como sujeitos políticos, partilhar poder e compreender que a verdadeira multiplicidade não é a soma de identidades isoladas onde cada um "tolera" o outro.
A verdadeira multiplicidade é o movimento de dissolução das identidades em direção à construção de universalidades realmente inclusivas.
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