O século 21 começa
VLADIMIR SAFATLE
FOLHA DE SÃO PAULO - 15/02/11
No início do século 19, Napoleão enviou tropas à colônia do Haiti. O objetivo era retomar o poder da mão de escravos rebelados comandados por Toussaint Louverture e, com isso, reinstaurar a escravidão. Num estudo clássico, Cyril James conta o momento em que os soldados franceses, imbuídos dos ideais da Revolução Francesa, ouvem a "Marselhesa" ser cantada por seus oponentes, os negros.
Desnorteados, os franceses se perguntam como era afinal possível ouvir suas próprias vozes vindas do outro lado da batalha. Afinal, contra quem eles estavam lutando, a não ser contra seus próprios ideais? Aquela experiência foi decisiva para quebrar-lhes o espírito de combate. A derrota foi uma consequência natural.
Esse pequeno fato histórico nos ensina o que acontece quando uma ideia encontra seu próprio tempo. Ela demonstra que estava presente em vários lugares, à espera do melhor momento para dizer claramente seu nome.
Quando os franceses ouvem suas próprias músicas vindas do campo inimigo eles, no fundo, descobrem que não são os verdadeiros autores de tais músicas. Quem as compôs foi uma ideia que usa os povos para se expressar. Quando isso fica evidente, então um momento histórico se abre impulsionado pela efetivação de exigências de universalidade.
Por isso, talvez seja o caso de dizer que, enfim, assistimos o começo do século 21.
Um fato como o 11 de setembro nunca poderia servir de marco para uma época, já que ele era um contra-acontecimento que serviu apenas para realimentar os piores preconceitos, medos e arcaísmos que deveriam ter sido há muito ultrapassados. Durante esses dez últimos anos, vivemos em um tempo morto e suspenso.
O verdadeiro fato que tem a força de inaugurar uma nova época são as revoltas no mundo árabe. O desespero de alguns analistas em lê-las através de esquemas e dicotomias velhos de mais de 30 anos, em tentar ressuscitar o fantasma da fracassada revolução iraniana, apenas demonstra como eles não estão preparados para enxergar o novo.
Como disse bem o sociólogo Olivier Roy, o que estamos vendo nesses países é a subida em cena de uma "geração pós-islâmica", que, tal como os escravos haitianos, se deixaram mobilizar por valores que precisavam, há muito, se deslocar para outros campos a fim de mostrar sua verdadeira força.
Que 84% dos jovens egípcios digam querer "democracia" é uma prova de novidade que só o preconceito xenófobo de alguns é incapaz de enxergar.
É claro que tais revoltas ainda estão longe da democracia liberal. Melhor assim. Já está na hora de livrarmos a democracia de suas amarras vindas do liberalismo. Talvez essa se transforme em uma das grandes tarefas deste século 21 que enfim começa.
Desnorteados, os franceses se perguntam como era afinal possível ouvir suas próprias vozes vindas do outro lado da batalha. Afinal, contra quem eles estavam lutando, a não ser contra seus próprios ideais? Aquela experiência foi decisiva para quebrar-lhes o espírito de combate. A derrota foi uma consequência natural.
Esse pequeno fato histórico nos ensina o que acontece quando uma ideia encontra seu próprio tempo. Ela demonstra que estava presente em vários lugares, à espera do melhor momento para dizer claramente seu nome.
Quando os franceses ouvem suas próprias músicas vindas do campo inimigo eles, no fundo, descobrem que não são os verdadeiros autores de tais músicas. Quem as compôs foi uma ideia que usa os povos para se expressar. Quando isso fica evidente, então um momento histórico se abre impulsionado pela efetivação de exigências de universalidade.
Por isso, talvez seja o caso de dizer que, enfim, assistimos o começo do século 21.
Um fato como o 11 de setembro nunca poderia servir de marco para uma época, já que ele era um contra-acontecimento que serviu apenas para realimentar os piores preconceitos, medos e arcaísmos que deveriam ter sido há muito ultrapassados. Durante esses dez últimos anos, vivemos em um tempo morto e suspenso.
O verdadeiro fato que tem a força de inaugurar uma nova época são as revoltas no mundo árabe. O desespero de alguns analistas em lê-las através de esquemas e dicotomias velhos de mais de 30 anos, em tentar ressuscitar o fantasma da fracassada revolução iraniana, apenas demonstra como eles não estão preparados para enxergar o novo.
Como disse bem o sociólogo Olivier Roy, o que estamos vendo nesses países é a subida em cena de uma "geração pós-islâmica", que, tal como os escravos haitianos, se deixaram mobilizar por valores que precisavam, há muito, se deslocar para outros campos a fim de mostrar sua verdadeira força.
Que 84% dos jovens egípcios digam querer "democracia" é uma prova de novidade que só o preconceito xenófobo de alguns é incapaz de enxergar.
É claro que tais revoltas ainda estão longe da democracia liberal. Melhor assim. Já está na hora de livrarmos a democracia de suas amarras vindas do liberalismo. Talvez essa se transforme em uma das grandes tarefas deste século 21 que enfim começa.
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