Pão, PIB e pobreza no Egito
VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SÃO PAULO - 01/02/11
No norte da África, efeito do "boom" chinês e emergente foi capturado pela elite; aos pobres, restou o pão caro
OS PRIMEIROS RELATOS melhores e locais da revolta no Egito dão conta de uma história muito diferente do conto de fadas "tech" de jovens estudantes trocando mensagens pela internet, "em rede", convocando "smart mobs". Em vez de investigar o que de específico na sociedade e no momento egípcios levou multidões a enfrentar a polícia, observadores ocidentais inventam uma fábula centrada no que entendem, em termos culturais e geracionais, quase uma fábula etnocêntrica: houve uma revolução porque os jovens lidam com gadgets de uma das indústrias de ponta dos Estados Unidos.
Mas esse estudante da revolta egípcia é mais comumente membro de, para nós, exóticas famílias extensas, quase sempre muito pobres, sustentadas por alguns poucos adultos mais bem empregados, e que inclui alguns jovens que concluíram seus estudos, mas não têm emprego, além de uma grande quantidade de "primos" menos instruídos, desempregados ou subempregados. Não se trata de um universitário ocidental clichê, munido de iPhone e dado a ficar teclando em seu quarto.
Esses filhos algo mais educados do grande boom demográfico egípcio veem de perto a miséria dos seus parentes vivendo nas muitas quase-favelas do Cairo, quando eles mesmos não vivem por ali. Essa geração, de resto sem perspectivas pessoais, cresce num período de aumento da desigualdade econômica, coincidente com anos de crescimento mais acelerado da economia egípcia e de aumento forte do custo de vida para os mais pobres: não é muito simplório dizer que falta pão.
Num quadro muito geral da ordem ou desordem das coisas, um dos fatores imediatos da revolta no norte da África é efeito da mundialização acelerada pela China. Ou seja, do aumento do consumo e do preço de matérias-primas em países emergentes, países que se beneficiam também da transferência de unidades produtivas do mundo "rico", setores que não são mais capazes de concorrer com as fábricas do complexo China e cia.
Tal efeito China beneficiou quase todo o mundo pobre, mas de maneira desigual (tanto inter como intranacionalmente). O crescimento econômico se acelerou até na África, mas houve aumento de desigualdade sem redução de pobreza, e a vida de quem vegeta na subsistência, à base de pão ou similar, piorou. Note-se, além do mais, que a inflação da comida causada pela demanda forte foi ainda impulsionada pela especulação com commodities no mercado financeiro mundial e pelos biocombustíveis feitos com grãos.
O Egito é um caso emblemático da combinação do efeito China com inércia social e autoritarismo político. Houve "reformas liberais" precárias e limitadas, combinadas à manutenção de um assistencialismo muito rudimentar. A elite que comanda a autocracia ou vive de seus favores foi capaz de apropriar os frutos da privatização limitada combinados aos benefícios derivados do consumo de China e emergentes. Mas não houve renovação da estrutura econômica. Não há perspectivas para a massa que acaba de ficar adulta e teve um pouco mais de escola. Não há canais políticos para dar voz aos largados na lata do lixo da história do assistencialismo, para os 40% de pobres do país, ainda mais pobres nos últimos dois anos simplesmente porque o pão ficou mais caro.
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