A praça vencerá
MÍRIAM LEITÃO
O Globo - 11/02/2011
Cada vez que o presidente Hosni Mubarak fala, mais enfurece os manifestantes, por isso é de se esperar um aumento ainda maior da força do protesto, hoje. A proposta de passar poderes para o vice-presidente, Omar Suleiman, não é a solução. Os dois são irmãos siameses. No décimo sétimo dia de manifestação, os egípcios pareciam cada vez mais determinados.
Nas horas que antecederam o pronunciamento de Hosni Mubarak, ontem, o Egito ficou cheio de especulações. Até porque ele normalmente grava seus discursos. Ontem, decidiu falar ao vivo. Mas, para todos os observadores, estava claro que, independentemente do que dissesse, a Praça Tahrir tinha vencido a queda de braço de três semanas.
O grande evento definidor tem sido a resistência do povo egípcio. Ele simplesmente não quer desistir. Houve um momento, depois do décimo primeiro dia, em que parecia que a oposição estava num beco sem saída. A praça começou a se esvaziar; a Fraternidade Muçulmana aceitou negociar com o vice-presidente, Omar Suleiman.
Mas a oposição voltou para as ruas e iniciou uma nova tática: greves e ameaças de greves, como a marcada para hoje pelos seis mil trabalhadores do Canal de Suez. Já estão de braços cruzados os trabalhadores das indústrias de cimento, algodão, siderurgia, com os sindicatos, que sempre foram atrelados ao governo, declarando-se a favor da manifestação.
Algumas dessas indústrias produzem insumos para o Complexo Industrial Militar, que é grande no Egito, com direito até a um Ministério da Produção Militar. Esse complexo industrial é formado por várias empresas com algo em comum: são geridas por generais, almirantes e brigadeiros.
A economia nestas três semanas está entrando em colapso. Desabastecimento, falta de papel moeda, cancelamento de projetos de investimento e fechamento de multinacionais passaram a ser parte do cotidiano. A Bolsa está fechada desde o início dos protestos e marcou a reabertura para domingo. O país está sofrendo uma sangria diária com fuga de capitais de estrangeiros e dos militares egípcios.
As manifestações voltaram a ganhar força até nas pequenas cidades. Ontem, em Kharga, uma cidade pequena, num oásis no Sudoeste do país, houve um confronto em que a polícia atirou e matou cinco pessoas e feriu dezenas.
As adesões são diárias, inclusive de jornalistas. Houve vários outros episódios de jornalistas da TV e do jornal do governo se negando a trabalhar e indo para a praça.
Um sinal de que a era Mubarak está chegando ao fim foi dado pelos militares, ontem. Houve uma reunião do Conselho das Forças Armadas. Mubarak é presidente do Conselho e normalmente participa da reunião. Ele não participou. Logo depois dessa reunião, o porta-voz avisou que as Forças Armadas atenderiam aos anseios da população. Casos de adesão ao movimento da Praça Tahrir de oficiais de baixa patente estão se multiplicando.
Passagens de todas as partes do país para o Cairo se esgotaram nas últimas horas, dando sinais de que a manifestação marcada para esta sexta-feira será de grandes proporções. E uma greve geral foi marcada para sábado.
O discurso de Mubarak ontem foi surpreendente porque ele parecia fora da realidade. E enfureceu mais a população. Qualquer tentativa de sobrevida está fadada ao fracasso. A dúvida é até onde vão as mudanças egípcias. Há as eleições presidenciais marcadas para setembro, mas há também a dúvida sobre o Congresso eleito de forma fraudulenta, em novembro, onde 95% de representantes são ligados ao governo. A única forma de recomeçar um novo Egito é com eleições gerais.
O futuro dirá se o Egito vai manter um regime tutelado pelos militares, como tem sido há décadas, ou se caminhará para ser verdadeiramente democrático. Seja como for, nenhuma transição é possível sem que a oposição participe do processo negociador.
Unida pela praça, a oposição vai se dividir durante a disputa eleitoral, evidentemente. O futuro do país é uma esfinge a ser desvendada nas próximas semanas e meses. Mas a tenacidade demonstrada nas últimas três semanas pelos manifestantes em todo o país foi o fato detonador das mudanças que o país passará a viver a partir de agora.
O presidente Mubarak esteve todo o tempo atrás dos fatos. Poderia ter cedido mais cedo, e aí poderia ter encontrado a sua saída honrosa. Poderia ter nomeado alguém mais aceitável do que Omar Suleiman, sua eterna sombra, seu chefe de inteligência, para o cargo de vice-presidente. Poderia ter voltado para a Alemanha para reiniciar o tratamento contra o câncer. Havia várias portas de saída e ele preferiu repetir que fica.
As mudanças no Egito aumentam a incerteza no Oriente Médio. Não se sabe muito como será o futuro. O que já se sabe é que lá, como em qualquer país do mundo, quando a população vai para uma praça de forma corajosa, persistente e determinada, ela muda o curso da História. Vários capítulos ainda não estão escritos, mas o Egito nas últimas semanas inspirou o mundo e ajudou o Ocidente a fazer um curso intensivo para começar a entender as nuances e diferenças entre os países da região.
Os manifestantes da Praça Tahrir empurraram também a política externa americana para a mudança. Dois anos depois de empossado, o presidente Barack Obama tinha alterado pouco a linha em relação ao Oriente Médio. Não tinha ido além das palavras do pronunciamento feito no Cairo. Nos últimos dias, o discurso foi mudando diariamente, ao vivo, e transmitido para o mundo inteiro. Em uma semana, Mubarak deixou de ser definido como um aliado confiável para ser instado por Obama a iniciar a transição. Ele reagiu, insistindo em ficar, mas sua saída é uma questão de tempo.
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