Forma e conteúdo
MIRIAM LEITÃO
O GLOBO - 03/02/11
A presidente Dilma acertou em ir ao Congresso e ler sua mensagem. Nunca fez sentido a burocrática entrega do texto pelo chefe da Casa Civil, que houve em governos anteriores. O país precisava modernizar esse ritual. Mas o evento tem que ser mais simples, direto, menos propagandístico. Não é a hora certa de os tribunais falarem. E muito menos de o senador José Sarney dar-se a homenagem da última palavra.
Nossa democracia é jovem, por isso é bom pensarmos sobre o evento de ontem. Democracia tem rituais e o Brasil está construindo os seus. Nos Estados Unidos, onde é tradicional esse evento, ocorre assim: o presidente vai ao Congresso, presta contas e apresenta suas metas. Depois, o contraponto é feito em discurso de um integrante da minoria. E só. Ninguém mais fala: nem representantes de outros poderes, nem mesmo os presidentes da Câmara e do Senado. Não é hora de linguagem empolada, nem de salamaleques. A oposição aplaude ou não aplaude e assim demonstra o que aceita e do que discorda. O Brasil não precisa copiar ninguém, mas pode pensar um pouco sobre a oportunidade desse momento.
Na terça-feira, foi início do ano judiciário. A presidente lá esteve e, pela boa tradição, nada falou, apenas ouviu. É o momento do Poder Judiciário dizer o que tem que dizer e ponto. Os ministros do STF e TSE não tinham que falar ontem de novo. Na terça-feira, foi o dia das eleições nas duas casas legislativas e os eleitos falaram. Ontem, era o dia de a chefe do Poder Executivo apresentar a perspectiva do seu trabalho, prestar contas e pedir apoio a projetos que terão que ser aprovados pelo Congresso. Dilma fez isso. Errou no tom laudatório.
O discurso foi, em certos pontos, uma repetição do que ela disse quando foi eleita e quando foi empossada. A esta altura, todo mundo sabe que o PAC 2 não representa um investimento de R$955 bilhões. O número foi fabricado para o palanque. No Orçamento de 2011, está previsto investimento de R$64 bilhões do governo federal. O resto é o truque de se somar investimento de estatais, estados, de empresas privadas e dívidas que as famílias assumirão para comprar seus imóveis. Era hora de falar sério sobre alguns terríveis desafios e olhar com sinceridade para os problemas que temos que superar. Obama admitiu que seu país está em nono lugar em estudantes formados em universidade, que está perdendo a corrida de tecnologia de energia solar para a China, que a Coreia do Sul bate o país em vários itens. Enfim, fez autocrítica que tornou os autoelogios mais críveis.
A presidente admitiu um erro num país que pintou como quase perfeito: que os aeroportos estão ruins. No mercado de trabalho ela corretamente comemorou o fato de que pela primeira vez os trabalhadores formais são maioria. Há muito tempo isso não ocorria. Mas ficaria diferente da propaganda eleitoral se ela admitisse o alto desemprego de jovens. Em Salvador, a taxa chega a 22%. Desemprego de jovens hoje é um problema mundial e cada país está debruçado sobre esse desafio.
O discurso teve alguns excelentes pontos. A presidente Dilma avisou que o governo implantará o sistema de alerta contra desastres naturais e que vai apoiar os estados nesse trabalho de identificação de áreas de risco. "Nenhum país é imune aos desastres naturais, mas não iremos esperar o próximo ano, as próximas chuvas pra chorar as próximas vítimas", disse a presidente. Ela propôs um pacto social para acabar com a miséria. Não bastará a transferência de renda, será preciso educação fundamental. Ao falar da educação, ela creditou ao país "nas últimas décadas" a universalização do ensino fundamental. Perdeu uma oportunidade de fazer um gesto à oposição: foi a campanha "Toda criança na escola", no governo Fernando Henrique, que atingiu esse objetivo. Fez bem em reafirmar o compromisso anti-inflacionário: "Não permitiremos em nenhuma hipótese que a inflação venha a corroer o tecido econômico." Seria esperar demais que ela fizesse justiça ao grupo político que realmente derrotou a inflação. Uma das bases da inflação baixa é o controle rigoroso dos gastos públicos, e naquele mesmo momento seu ministro da Fazenda, Guido Mantega, estava defendendo a indefensável maquiagem nas contas públicas feita no ano passado.
Ela foi aplaudida fortemente quando anunciou que tem na agenda as reformas tributária e política. É bom que ela saiba que aquelas palmas não significam aprovação. Nessas duas reformas cada um tem um projeto na cabeça, e uma reforma tributária passa por uma trabalhosa negociação com os estados.
Temos razão para sentirmos orgulho da democracia e algumas razões de constrangimento. Os ministro Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski falaram da razão de orgulho: uma robusta estrutura constitucional que permite ao país resolver os conflitos. A tragédia do Egito, que ontem se aprofundou com briga de rua incitada pelo governo, confirma os dois juízes. Só a democracia tem os canais de escape que permitem a solução negociada dos impasses.
Ao fazer o longo e tortuoso discurso, o senador José Sarney lembrou das várias vezes que o Congresso foi fechado na História do país. Só se esqueceu de dizer que ele estava ao lado da ditadura que fechou a Casa em 1968 e 1977. O pior momento da cerimônia de ontem foi este: quando o presidente do Senado, em seu extravagante quarto mandato, deu a si mesmo o direito da palavra final.
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